‘Una Mujer Fanstástica’ é uma ode às minorias, uma luta pela igualdade
A vida tem destas coisas, por vezes há coincidências e timings felizes. Uns dias antes de ver “Una Mujer Fantástica”, filme da autoria do realizador chileno Sebastián Lelio, ouvi a entrevista que foi feita à ativista e feminista Alice Azevedo, pelo projecto de jornalismo independente Fumaça. Portugal e Chile são dois países bastante afastados para a escala do nosso planeta, a cultura é diferente, as realidades sociais também o são; porém, são duas sociedades que ainda estão em desenvolvimento, inclusive nos direitos dos cidadãos transexuais. E é disto que este filme fala: dos direitos das pessoas transexuais, da ostracização forçada por parte da sociedade, de amor, de uma luta pela sobrevivência, de humilhação e da perda de um ente querido.
Não poderia avançar mais o texto sem primeiro contextualizar (ou, para alguns leitores, simplesmente realçar), o facto de a personagem principal ser interpretada por uma actriz transexual, Daniela Vega. Este é um aspecto importante. Não assino por baixo a ideia extremada de que as personagens que pertencem à comunidade LGBTQ tenham de ser interpretadas necessariamente por actores que pertençam a essa mesma comunidade. Essa ideia, na minha opinião, é mais uma das ideias da vaga avant-garde do politicamente correcto. Porém, em nenhum momento retiro mérito, bem pelo contrário, à maravilhosa representação da actriz, incrível! Que força de mulher, cujo mérito do filme depende do grande mérito dela.
Um crítico, para falar deste filme, dificilmente consegue fazê-lo sem dar a conhecer os seus valores e essa é a força desta obra: obriga cada um a confrontar-se com as suas limitações morais, filosóficas, ajuda a reflectir sobre o que dá identidade ao ser humano e o que distingue um homem de uma mulher.
Entre a realidade e a ficção captada pela emocionalmente transtornada Marina, a realidade da sociedade chilena é captada com bastante violência. Cada interação num café, na rua, com a família do falecido companheiro ou com instituições do estado como as forças de segurança são uma demonstração das inúmeras barreiras e dificuldades que uma pessoa neste contexto tem que enfrentar, bem como claras restrições de diversas liberdades que colocam a integridade moral e física em causa. Quando esta leva o seu namorado ao hospital, interpretado pelo actor chileno Francisco Reyes, é vista como uma criminosa por um polícia e por um médico. E como é que a Marina reage? Em geral, como qualquer ser humano teria reagido, porque é de um ser humano que se trata: umas vezes mostra uma força de vontade inacreditável pondo em causa os valores morais e democráticos das diversas pessoas em causa e, outras vezes, desmorona como um castelo de cartas.
A vida avança, o tempo nunca para, mas as mágoas não cessam: a memória é sempre mais forte. As adversidades ao longo do caminho são diversas: umas reais (a ex mulher do seu companheiro e o respectivo filho que expelem da boca e dos olhares um total desumanismo), outras metafóricas (rajadas de vento que não a deixam viver, avançar). Num dos momentos em que a personagem se sente mais em baixo, decide ir a uma discoteca. Aí, mais uma vez, vê o seu amor tão perto, mas tão longe; um reflexo das suas emoções inconstantes, mas tão humanas. Corroborando a ideia da realidade que é nebulada pela personagem nos seus momentos emocionalmente mais instáveis, a cena acaba com Marina a dançar um género de musical com as pessoas à volta dela acompanhando-a e, no fim, eleva-se com um sorriso na cara que não podia estar mais distante dos seus sentimentos.
O filme acaba da melhor forma: um concerto em que Marina canta uma ária de Handel. Tanto a personagem como a actriz são cantoras líricas. Mais uma vez, captamos a versatilidade tanto de Daniela Vega como do próprio realizador que a escolheu e é um de vários aspectos muito interessantes, porque em muitos casos não é possível separar a actriz da personagem, o mundo real do ficcional.
“Una Mujer Fanstástica” é uma ode às minorias, uma luta pela igualdade que trespassou o festival dos Óscares, sendo dado ao filme o prémio na categoria de Melhor Filme Estrangeiro. Mas não ficou por aqui. Em Berlim, ainda ganhou, entre diversos prémios, o Teddy Award e ainda foi nomeado em várias categorias pela GALECA (Gay and Lesbian Entertainment Critics Association). Daniela Vega é a heroína desta história, do cinema e de uma minoria. E o que isso significa para um país como Portugal ou para países da União Europeia como a Hungria que perseguem minorias como esta? Os filmes também podem ajudar a mudar a sociedade.