Valentina

por Luís Osório,    11 Maio, 2020
Valentina
Fotografia de Caleb Woods / Unsplash

A Valentina tinha 9 anos. Podia ser irmã dos meus filhos, podia ser minha filha. Via certamente muitas das coisas que eles veem — é provável que fosse assídua do Canal Panda, que tenha este ano começado a ler com mais desenvoltura, que soubesse a tabuada até aos 10 e que brincasse com bonecas ou carrinhos (como a minha bebé Benedita e como a minha enteada, Leonor, que deixou os carrinhos para os irmãos).

Não sei se tinha muitos brinquedos, teria certamente alguns. Leio que era divertida e dada. Fazia recados, talvez gostasse de falar com amigos que inventava na sua cabeça, sabia as histórias que todos aprendemos com a idade dela. Talvez tenha sonhado ser princesa ou imaginado o caminho do Capuchinho Vermelho, talvez tivesse algum livro de Os Cinco pronto para ser lido pela primeira vez.

Tinha 9 anos, chamava-se Valentina. Não sabia muitas coisas da vida, era uma criança com a vida à frente, com tão pouco passado para o futuro que lhe acenava em todos os poros de uma pele sem vincos. Não tinha sequer idade para ter os dentes todos, nasceram-lhe decerto alguns definitivos e permaneciam outros ainda de leite. Gostava de ser abraçada como todas as crianças gostam. De ser protegida, de se sentir segura. Devia ter roupinhas preferidas, comidas preferidas, doces preferidos. Devia também ter férias de que não se esquecia, um coleguinha por quem suspirava, amigas e amigos com quem se confessava sobre coisas absolutas, a matéria de que é feita a infância.

A Valentina tinha 9 anos e a Polícia Judiciária está convencida de que o pai a matou. Ou o pai e a madrasta. Ou… sinceramente, tanto faz. O pai da Valentina tê-la-á matado premeditadamente por motivos que saberemos um dia — como se existisse possibilidade de poder existir um motivo válido para tal monstruosidade.

O pai da Valentina era pai como eu. E a sua filha Valentina tinha 9 anos e era uma criança, deveria ser a sua criança, a sua bebé. E ele, se for mesmo verdade conforme confessou numa noite de interrogatório, assassinou-a na casa de banho.

Grotesco e infame.

A Valentina não chegou a ser uma mulher. Não chegou a ter uma profissão. Não chegou a amar verdadeiramente alguém. Não chegou a ter o seu próprio caminho, a forjar o seu próprio destino.

Viveu 9 anos antes de partir.

E deixou-nos aqui.

Ávidos de justiça e vingança, o mais perigoso dos sentimentos.

É de um monstro que estamos a falar. Eventualmente de dois monstros. Sempre os tivemos, sempre os teremos, a monstruosidade, o mal, existe. E para muitos deve ser cortado pela raiz, pena de morte grita-se nas redes sociais, pena de morte gritam os profetas amorais de um populismo que se aproveita para nos apontar aos instintos mais básicos.

Se libertassem aquele pai e aquela madrasta numa qualquer rua não tenho qualquer dúvida de que seriam linchados. Se os deixassem à mercê dos presos e presas não tenho dúvida de que a sua vida terminaria no momento em que começassem a cumprir pena. E ninguém seria capaz de soltar uma lágrimas por eles.

Porém…

O que distingue o Estado é a faculdade de não ser instintivo, a capacidade de poder estar acima do que de mais básico nos passa pela cabeça.

A ser provado que matou a filha aquele pai mereceria morrer? Certamente que sim. E se tivesse acontecido com uma filha minha não tenho dúvida de que desejaria ardentemente que morresse e talvez fizesse por isso. Mas não desejaria que o Estado pudesse decidir pela sua morte pois seria a prova de que combateria a barbárie com a barbárie. O que nos faz ser maiores, enquanto parte de um todo que nos transcende, é a capacidade de confiarmos ao Estado o que não conseguimos individualmente.

Valentina, tinha 9 anos, era uma princesinha. Não consigo imaginar um crime mais violento e horrendo. Mas é precisamente por ser tão horrendo que não devemos ceder no essencial, no que nos faz ser o contrário do mal que combatemos.

Valentina morreu sem perceber a razão. Não a que lhe devem ter gritado quando a assassinaram, mas a verdadeira razão. Morreu inocente e perfeita. Podia ser minha filha, podia ser filha de muitos dos que me leem. Podia ser nossa filha. Tinha um sorriso de criança. E deixou-nos assim, sem saber o que pensar deste lugar que nos tira e nos oferece como se fossemos apenas figurantes entre anjos e demónios.

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