Valete, humor e liberdade de expressão
Hoje, depois de ter feito a minha rubrica de humor na rádio, um ouvinte ligou indignado com o teor da mesma. Eu brincava com velhos e ele achava inadmissível. Algum de nós está errado? Não. Eu exerci a minha liberdade criativa e artística, ele o seu direito de indignação. Se eu acho que a crítica dele, assente no respeito que devemos a certos grupos sociais, faz sentido? Acho que não. E escolho ir contra tal convicção alheia. Ou seja, responsabilizo-me pelo discurso que eu produzi, mesmo este estando a ser contestado.
Não me quero pôr em bicos de pé com esta introdução biográfica, apenas relevar que o meu trabalho depende da minha liberdade artística. O que me leva a pensar a polémica em torno da música do Valete. Discordo em absoluto de todos os discursos que ponham em causa a produção da música. Qualquer conteúdo, independentemente do seu teor, deve poder ser produzido. O que não aceito é a invalidação do debate sobre a obra. Alguém acusar a música de conteúdo misógino é válido. Pode não ser a nossa opinião sobre a música em si, mas temos de respeitar essa visão.
O problema é que os artistas, debaixo do chapéu do politicamente correto, confundem debate com censura. É comum ver os artistas – nós, comediantes, à proa – queixarem-se dos ataques nas redes sociais. À parte dos insultos e ameaças – situações criminalmente previstas e moralmente reprováveis – tratam-se de reações negativas a certo conteúdo. Há uma tendência para uma crítica bacoca num meio protegido e quase anónimo como a Internet? Claro. Mas é aqui que vejo o paradoxo. Porquê as constantes queixas sobre tal negatividade? Porquê esta desmesurada preocupação em evitar um debate ideológico sobre qualquer discurso artístico. Estou farto de ouvir que as coisas são só piadas ou só músicas. Não. São piadas e são músicas que existem num espaço público. É absurdo querer controlar os limites do seu impacto. Isso é uma intenção artística preocupante.
Qualquer artista responsável deve pensar na integridade da sua obra e criá-la conforme a sua convicção. Não pode esconder-se sobre o manto do artista sofredor. Não faz sentido criticar a ultrasensibilidade do público e comportar-se como uma virgem ofendida ao mínimo esboçar de contestação. Por isso é que acho a defesa da música do Valete, por parte do próprio, uma valente patetice. O seu único argumento válido – e esse chegaria, na minha opinião – é o da liberdade de criar. Não entendo como é que alguém que se defende de uma acusação misógina acha que apontar o facto de uma mulher ser ex-namorada de alguém não é um tiro nos pés.
Não percebo como é que a altivez de pronunciar alguém como verdadeiro ou falso feminista é um discurso sensato. Muito menos aceito a aplicação do conceito de cultura de cancelamento. Só houve política de cancelamento de uma das partes: do próprio Valete quando, cobardemente, ameaçou uma jornalista se esta não parasse de dizer o que estava a dizer. É este silenciamento da crítica, disfarçado de debate sobre o politicamente correto, que me preocupa. É um péssimo favor que os artistas estão a fazer. Primeiro, porque se desresponsabilizam pela própria arte que produzem. Segundo, porque criam uma nuvem difusa que agudiza a impressão de um espaço mediático demasiado controlado. É inegável que o espaço público é mais vigiado do que nunca mas isso é, de forma geral, bom. Aliás, é o que permite a muitos artistas terem uma existência independente outrora impensável. Daí que rejeite o apelo quase belicista lançado por Rui Sinel de Cordes no seu Instagram. Unir-nos pela liberdade de criar de qualquer um, parece-me fazer todo o sentido. Unir-nos em classe para produzir uma cultura intolerante à crítica, nem pensar. Não concebo uma realidade onde os críticos são meramente representados como frustrados. É uma diminuição que só alguém com poder pode proferir.
Os comediantes, mais do que ninguém, devem estar na vanguarda da responsabilidade do discurso na medida em que tudo lhes pode ser alvo (alvo, não vítima). Responsabilidade, em liberdade, é dizer o que se quer e assumir as consequências pelo que se diz. Se uma piada é mal interpretada, vítima de descontextualização ou contestação trata-se de uma situação injusta mas uma natural consequência da sua própria existência num espaço social. Claro que se deve combater esse espírito predador e absolutista mas com liberdade, não absolutismo travestido de razoabilidade.