Vamos ver os pobres
(Refrão: Vamos ver os pobres, que lindo é. Vamos ver os pobres, dá cá o pé.) [Adaptação de poema de Mário Cesariny]
Ir a África «salvar os pobrezinhos» faz parte do crescimento de qualquer branco privilegiado com bom coração — e haver negócios com base neste costume prova que, tal como o cacau ou o ferro, também a pobreza é um recurso natural.
Eis-vos, brancos-redentores, fotografados no meio dos «pobrezinhos», acabadinhos de lhes «salvar a vida» (ignorando que possam estar a perpetuar redes de tráfico de crianças). Mas que interessa isso? São porta-chaves, os teus pobres: as moscas que os rodeiam «fazem parte», a sua subnutrição «é uma questão complexa» e a morte que os espera «é a lei da vida». O seu olhar não é o da fome: é o que vai pintar likes no Instagram.
Ou que ficará bem em livros de mesa. Prestou-se a esse nojo a Sunono Publishing, editora árabe do Gaza I Spy — um fofo “luxurious coffee table book” com 200 fotografias “cativantes” que documentam a “força e resiliência” das crianças de Gaza. Por apenas 85 libras pode comprar uma edição de “alta qualidade”, “encadernada com tecido de linho” e com contracapa “feita à mão”. Por fim, garante a editora, o “impacto” de cada fotografia é “plenamente atingido” e será apresentado de forma “sofisticada”. Até os buracos nos estômagos se conseguirá ver.
Que chics vão estas crianças — pena algumas já não estarem vivas. Só o capitalismo chega a um estado tão perverso em que até da desgraça humana produz valor económico e estético. Parabéns, Humanidade: atingiu o ponto em que ter fotografias de crianças a fugir de bombas faz parte da luxuosa decoração da sua sala.
(Vamos ver os pobres, que lindo é. Vamos ver os pobres, dá cá o pé.)
Uma das melhores denúncias da comoditização da pobreza parte do belga Renzo Martens, autor do documentário Enjoy Poverty, filmado na República Democrática do Congo. Mais do que denunciar o fenómeno, Martens, transgressivo, incita os congoleses a jogarem o jogo — ou seja, a também lucrarem com as imagens da sua desgraça.
É simples: se os cadáveres nos arbustos são dos seus irmãos e pais; se a fome é das suas primas e avós; se o sofrimento é dos próprios, porque são os fotojornalistas ocidentais a lucrar com as imagens? Não deviam ser os próprios congoleses, que também fotografam? A ideia de Martens, apesar de macabra, levanta a mais importante questão: “A quem pertence a pobreza?” — aos pobres. Então, se assim é, jogue-se ao capitalismo e que pelo menos os detentores da pobreza dela beneficiem: quer vendendo as suas fotografias, quer recebendo proveitos dos que vão lá fotografá-la.
Para certo ocidente, estas realidades não existem: são uma mera experiência estética, melhorada por saberem-na verdadeira. O outro não existe: existe a minha experiência do outro. As crianças famintas em Gaza ou os mortos no Congo não existem: existe a minha experiência de ver as suas fotografias numa edição de luxo “encadernada com tecido de linho”. Não é uma experiência humana, é uma experiência estética.
“Enfrentamos a época tal como ela se nos apresenta”, escreveu um poeta inglês. A nossa é a da sociedade espetáculo, do capitalismo moribundo, da falta de noção e do superficialismo militante. Como à vista não há melhoria, resta-nos a distração com as pequenas coisas da vida, pelo que sugiro:
Vamos ver os pobres,
Que lindo é.
Vamos ver os pobres,
Dá cá o pé.
Vamos ver os pobres.
Hop-lá!
Vamos ver os pobres.
Já está.
[Adaptação de poema de Mário Cesariny]
Esta crónica foi originalmente publicada no Instagram do Henrique Pinto Mesquita e, com a devida autorização do autor, foi aqui reproduzida.