Vasco Pulido Valente, o que perdeu a pressa
Estive em sua casa, duas vezes. Recordo a angústia antes de entrar – ele tinha a fama e o proveito de ser intratável, arrogante e caprichoso. Vi-o fora de casa umas quantas vezes. Por delicadeza, nunca me aproximei. Arrisquei um aceno, não sei se me reconheceu.
Trago-lhe a minha memória de Vasco Pulido Valente. O homem com uma casa onde todos os objetos parecem estar no sítio certo. Decerto que imagina os livros, os cinzeiros, a desarrumação. Não vá por aí. É tudo ao contrário, na sala só uma estante de livros, uma mesa com jornais e as fichas de investigação impecáveis e obsessivamente ordenadas. Num móvel à entrada dezenas de maços de cigarros. Onde tem os livros, perguntei. «Guardo muito poucos e na sala só estão apenas os que considero essenciais e de consulta, mais nada. Porque haveria de guardá-los, à maioria deito-os fora depois de os ler».
Esticou das duas vezes as pernas sobre as almofadas. Com uma ou outra provocação cheguei-lhe a um sorriso. E falámos por junto várias horas, já lá vão alguns anos. Mesmo assim, quando por ele passo é como se não existisse, o que diz mais sobre mim do que sobre ele. Por antecipação imagino que me vai ostensivamente virar a cara. E evito-o. Não é bonito, não me orgulha.
Caminha para os 80 anos. Regressado à sua sala e ao que me disse, imagino-o mais sozinho do que nunca. É curioso ter-lhe lembrado o texto que escreveu na revista K por ocasião do seu meio século – «Um homem deita-se com o mundo aos pés e acorda com ele às costas. As mulheres fogem, os amigos desaparecem, os telefones desligam-se. Dantes andava-se e esquecia-se. Agora, a vida pára. Repete-se. Um mês é igual ao anterior e ao próximo e ao seguinte».
Levou a recordação do texto para a ausência de Deus e para o medo da morte e da solidão. Percebeu cedo da inevitabilidade, como forma de sobrevivência, de se obrigar a estar contra a opinião pública a quem a maior parte das pessoas se submete cegamente. Por isso provoca rupturas, escreve negro onde todos vêem branco, arrisca amizades por uma boutade, é acintosamente contraditório quando lhe é dado a escolher entre a coerência e o respeito pela opinião dominante. Ainda assim o medo da solidão. E da morte, da dor, da estupidez das pessoas. «Não sou eu que estou mais sozinho, é a própria sociedade que evoluiu para uma forma de associabilidade social em que as pessoas se guiam pela sua própria consciência, o que não quer dizer nada. É um puro estado psicológico, uma opinião, um acho ou não acho».
Vasco Pulido Valente é talvez o mais odiado dos homens com influência. Pela classe política, por jornalistas, gente do dinheiro. Já o foi mais, é verdade. Arrisco dizer que é mais maldito do que marginal – distinção que Vergílio Ferreira fazia entre os que eram tolerados e os que verdadeiramente incomodavam. Só que a culpa é mais do país, onde nada parece já incomodar, do que dele.
Mas tem os seus ódios; como Pinto Balsemão que nunca lhe perdoou azedas opiniões quando mantinham uma amizade. Na verdade, poucos o suportam. Mesmo os que lhe admiram a escrita, o brilhantismo ou a cultura. Poucos conseguem suportar personagens contraditórios, solitários e que se julgam diferentes do comum dos mortais – não lhes fica mal pagarem um preço e sofrerem pela ousadia da soberba.
Foi-se separando dos ideais e desiludindo com os homens. No entanto, manteve a amizade com Mário Soares até ao fim. Se Pulido Valente arriscava a contradição pelo dever de se manter livre da opinião da maioria; Soares sabia ler como poucos o ruído da turba, mas gostava de se rodear dos que não pertenciam ao rebanho. Talvez seja isso que os uniu, isso e uma história pouco conhecida. É que Pulido Valente conhecia o fundador do Partido Socialista desde os seus três anos: «Soares estava preso em Caxias com o irmão da minha mãe. Ela costumava visitá-lo e levava-me. Recordo um homem muito bem-disposto, simpático e que falava comigo. Era ele», contou-me.
Uma relação que continuou pelos anos. Vasco foi expulso do Liceu Camões, teve uma pleurisia e, por esta ou por outra qualquer razão, fez os últimos dois anos do ensino secundário no Colégio Moderno. Tinha 15 anos e foi no Gente Moça, jornal do Colégio, que escreveu o primeiro texto da sua vida – ao que se sabe um artigo sobre teatro rasurado de Eça de Queiroz. Estreitou a relação com a família e do patriarca, João Soares, recorda que, chovesse ou fizesse sol, estava sempre à porta do seu gabinete quando os alunos entravam. Quando contente apertava-lhes a mão, quando aborrecido apenas lhes estendia dois dedos. O hábito do pai de Mário provocou uma forte impressão ao adolescente Vasco.
Politicamente foi do PS entre 1974 e 1978. Apoiou Ramalho Eanes em 1976; Soares Carneiro em 1980; aceitou ser secretário de Estado da Cultura no governo de Sá Carneiro; pertenceu à comissão de honra da candidatura de Soares à presidência e foi deputado pelo PSD após a substituição de Cavaco Silva por António Guterres. Ao fim de poucas semanas abandonou o Parlamento pela porta dos fundos. Sem honra, glória ou possibilidade de encontrar caminho de volta.
Numa das vezes quis saber o porquê de ter aceite o convite. Contudo há certas coisas que não se explicam, simplesmente acontecem por entre as nossas urgências, medos, pequenas ambições. Disse-me: «Também não percebo porque aceitei ser deputado. Creio que representava a última oportunidade de voltar à política ativa e isso contribuiu para a minha decisão. Achava que a saída de Cavaco Silva iria produzir grandes alterações, não percebi que eram impossíveis. Não há nada de mais patético do que um velho com pressa».
Aposto que a sua sala continua tão ordenada como antes. Vasco Pulido Valente deve estar sentado no sofá com as pernas esticadas por cima de umas almofadas. Se o vir fora daí, num restaurante ou na rua, é provável que siga em frente como se nunca o tivesse ouvido dizer que adoraria escrever um livro policial. Ou que os tempos de estudo em Oxford tinham sido de longe, os mais felizes da sua vida.
Talvez no seu sofá, rodeado por livros guardados na memória, possa de quando em vez regressar ao sítio onde foi feliz sem o incómodo risco da ilusão.