Venceu o racismo. Outra vez
17 de Maio de 2015, a CMTV fazia a sua habitual emissão em direto à porta do estádio, já no fim do jogo para o campeonato, entre o SL Benfica e o Vitória Sport Clube. Nas imagens da emissão, via-se José Magalhães, um pai, branco, com os seus dois filhos pequenos, e o seu pai — o avô das crianças, rodeado por dois polícias, brancos, com quem falava. Enquanto o seu filho mais novo, 8 anos, bebia água, sem se saber o que terá sido dito pelo pai, um dos agentes avança contra José Magalhães, atirando-o para o chão. Entre pontapés e bastonadas, vê-se a aflição de uma criança pequena que chora ao ver o pai agredido. O avô, ao tentar defender o filho, é socado pelo polícia. Rapidamente se juntam vários agentes e um deles afasta a criança, abraçando-a, para que não veja o pai a ser pontapeado, enquanto outros agentes formam um cordão que impede que qualquer transeunte se intrometa na detenção violenta do homem. A imagem do polícia a abraçar a criança viria a tornar-se viral e partilhada como demonstração da existência de humanidade na PSP, algo publicitado pela própria. Quase que dá para rir.
Nos dias que se seguiram, debateu-se a atuação da polícia, entrevistou-se o pai, o filho, e o espírito santo. A família foi convidada a ver um jogo no camarote do Estádio da Luz, foram convidados a subir ao relvado antes do jogo, com direito a uma camisola autografada pela equipa de futebol. Tentou-se a todo o custo que aquele dia em Guimarães fosse apenas um dia de má memória na vida daquela família, em particular daquela criança de oito anos — duvido que consigam.
“A violência sobre corpos negros há muito que está legitimada neste país, mas ler num acórdão que “o choro da sua filha é à mãe que se deve”… É de enojar.”
O subcomissário Filipe Silva, agente responsável pelas agressões, foi condenado em 2018 pelo tribunal de Guimarães a três anos de prisão, com pena suspensa pelos crimes de ofensa à integridade física qualificada, relativos às agressões, dois crimes de falsificação de documento e dois crimes de denegação de justiça e prevaricação, por alegadamente ter falsificado o auto de notícia. Quem diria que os polícias mentem para se safar. No ano seguinte viu a pena ser agradava pelo Tribunal de Relação de Guimarães, para três anos e meio.
19 de Janeiro de 2020, Cláudia Simões, uma mãe, negra, apanha o autocarro com a sua filha de 8 anos, também ela negra, quando é advertida pelo motorista, branco, para o facto de a filha não ter o passe (grátis na sua idade). O motorista decide interpelar o polícia que vai a passar, Carlos Canha, um homem branco. O que se seguiu é impossível deixar qualquer um indiferente: uma mulher a ser manietada à força por um agente que lhe fazia um mata-leão. Confesso que enquanto pessoa negra é-me difícil, hoje em dia, ver um polícia fazer um mata-leão a outra pessoa negra e não temer pelo desfecho. Foi algemada, insultada e agredida em frente à filha. Quem tentou prestar auxílio foi igualmente ameaçado pelo agente. Outros receberam ordens de prisão, como é o caso de Quintino Gomes e Ricardo Botelho, negros. Chegados à esquadra foram agredidos e insultados.
“Aquela mãe pagou o preço de nascer mulher, e preta. Não lhe é permitido falhar e o castigo será sempre o mais cruel possível.”
O caso começou a ser julgado no ano passado e na passada segunda-feira, dia 1 de Julho de 2024, o coletivo de juízes presidido pela magistrada Catarina Pires, certamente todos brancos, decidiu condenar Cláudia Simões, e absolver Cláudio Canha dos crimes cometidos contra aquela mãe. Para a sua decisão, o tribunal não teve em conta o depoimento dos testemunhos a favor de Cláudia Simões, por considerá-los “tendenciosos” e de “perspetiva enviesada, parcial, sugestionada, orquestrada.” Ao contrário das declarações do agente e colegas, que foram consideradas pelo coletivo de juízes “seguras, lógicas, naturais, sem artifícios”. Sim, os polícias não mentem. Já pretos protegem-se uns aos outros.
Se voltarmos a olhar para o passado, diríamos que a reação que se seguiu foi mais ou menos expectável, num país onde a violência não pode deixar ninguém indiferente, ainda mais quando cometida por quem tem o dever de preveni-la. Se olharmos com atenção, facilmente percebemos que Cláudia Simões não teve nem metade do tratamento que teve Fernando Magalhães e a sua família. O zelo há de ter sido tanto que pouco ou nada sobrou para Cláudia Simões e a filha. Deve ser isto, o tal privilégio branco que tanto falam. A violência sobre corpos negros há muito que está legitimada neste país, mas ler num acórdão que “o choro da sua filha é à mãe que se deve”… É de enojar. Uma mãe negra e a sua filha valem pouco para um Estado que só se preocupa com aqueles que têm a cor igual a si.
Em 2015, foi unânime que não havia nada que pudesse justificar tamanha violência sobre aquele pai, em frente ao seu filho. Nove anos depois, querem-nos convencer que não ter consigo o passe, dá direito ao que se seguiu. Cláudia Simões foi vista como culpada desde o primeiro momento. Aliás, o tribunal confirma isso mesmo, dizendo no acórdão final que “era sua obrigação, enquanto mãe não se esquecer do passe”. Aquela mãe pagou o preço de nascer mulher, e preta. Não lhe é permitido falhar e o castigo será sempre o mais cruel possível. No acórdão ainda é possível ler que as lesões apresentadas por Cláudia Simões, segundo o tribunal, “trata-se claramente de alopecia devida ao uso constante de penteados com tração, geradores de tensão prolongada ou repetitiva do cabelo”. De fazer vomitar até o mais resistente estômago.
“O racismo em Portugal goza de proteção institucional.”
No entanto, o mesmo tribunal que não condenou Carlos Canha pelas agressões contra Cláudia Simões, condenou o agente a três anos de pena suspensa pelos crimes de cometidos contra Quintino Gomes e Ricardo Botelho, ambos detidos na sequência da detenção de Cláudia Simões: ofensa à integridade física qualificada, sequestro agravado, injúria agravada e abuso de poder. Fico na dúvida se considerar alguns testemunhos de tendenciosos e enviesados não seria a juíza a projetar e espelhar as suas próprias intenções. Além do machismo latente nesta decisão, ao considerar, diria eu, que por ser mulher Cláudia Simões tenha merecido os golpes deferidos contra ela, já que uma mulher não tem nada que responder. De outra forma, custa-me a percebe esta dualidade de critério.
Ao tentar afastar este caso de qualquer motivação racista, como se lê no acórdão, o tribunal colocou a nu todo o seu racismo, provando, uma vez mais, que o racismo em Portugal goza de proteção institucional. O coletivo de juízes diz que “ninguém fez mal a Cláudia Simões”. Fez, sim! E não foi pouco. Fez o agente Carlos Canha e fez o tribunal de Sintra, que ao condenar aquela mãe, condenou todas as outras mães negras e as suas filhas, que a partir de agora sabem o que lhes acontecerá se ousarem esquecer do passe. Mas acima de tudo, fez o Estado português que, enquanto ignora o seu racismo, vai fazendo estragos.