Vénia a David Lynch

por Cláudia Lucas Chéu,    16 Janeiro, 2025
Vénia a David Lynch

Há uma cena do filme Mulholland Drive, de David Lynch, em que as duas protagonistas lésbicas assistem à performance emocionante e emocionada de uma cantora no teatro Silencio. A cantora usa um vestido curto bordeaux, se bem me recordo, e está maquilhada quase como um Pierrot sem a cara branca, com uma lágrima desenhada a negro debaixo do olho direito.

Apresentação e representação dramáticas. É uma actuação magnífica da música Llorando, de Rebekah Del Rio, uma cena que nunca esqueci. As protagonistas vão ficando progressivamente emocionadas com a actuação — como certamente muitos dos espectadores do filme, eu própria também me comovi — até que o realizador, um génio, dá-nos uma machadada de realidade. A cantora desfalece em câmara lenta, ficando no chão, e continuamos a ouvir a mesma voz emocionante e emocionada; e nós, os espectadores do filme e as protagonistas, pasmamos com o playback, com a mentira. O choque da fraude, somos enganados. É um esquema, uma estratégia, que costuma acontecer na comédia, por exemplo — a desconstrução de uma cena emocional ou tensa —, mas não é isso que Lynch faz em Mulholland Drive. Ele mostra-nos a dialética da verdade e da mentira na Arte, neste caso, no Cinema. A verdade estética, a ética e a narrativa podem situar-se em planos dissonantes, como é o caso, e como são, aliás, no meu entender, todas as grandes obras de arte.

Soube há pouco que David Lynch morreu. Morreu o génio responsável por Twin Peaks, Veludo Azul, O Homem Elefante, entre tantas outras obras notáveis. Era um génio, sim. Com um olhar ímpar.

Para mim, aquela cena de playback no teatro Silencio abriu-me horizontes enquanto artista, na altura a estudar formação de actores no Conservatório de Teatro. Estava convencida de que, para se chegar ao espectador, tinha de ser verdade a interpretação da actriz ou do actor. Recordo a inocência e ignorância da minha afirmação quando, questionada pelo professor e encenador João Brites (com quem vim depois a trabalhar no Teatro O Bando) sobre o que procurava no meu trabalho de actriz, respondi: «Ando à procura da verdade.» A resposta que me deu foi: «E perguntas a um quadro de que gostas se é verdadeiro? Uma pintura pode ser verdadeira?» Duas questões que ainda hoje, como professora, coloco aos meus alunos quando me falam sobre a verdade na interpretação. É claro que sei o que estão a querer dizer, mas a questão não é essa, é a diferença entre verdade e verosimilhança. Aquela cena de David Lynch responde bem a esta questão sem dar nenhuma explicação.  Uma vénia.

Sugestões da cronista:

Ando a ouvir há mais de duas décadas as Variações Goldberg, de Bach, por Glenn Gould, e ainda não me cansei. Acabei de ler História da Violência, de Édouard Louis, e Retrato Huaco, de Gabriela Wiener; recomendo muito ambos.

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