Ver Veneza
Richard Wagner (que morreu, como se sabe, em Veneza) colocou na boca de uma das suas personagens uma frase que repetidamente me ocorreu nos dias que o André e eu passámos em Veneza: «o prazer abençoado de ver» (em alemão, «des Sehens selige Lust»).
Veneza convida a esse prazer a cada segundo. Como escreveu Hugh Honour num livro publicado quando eu tinha 2 anos de idade, «Veneza é a única cidade do mundo onde é possível andar a pé mais de duas horas seguidas sem nunca ver nada de feio». Eu agora já tenho 56 anos; e essa frase continua válida. E claro que não é só a questão de que não se vê «nada de feio». A questão é, sobretudo, esta: aquilo que se vê está num plano tão superlativo do Belo que, na realidade, as palavras humanas são fracas de mais para descrever essa beleza. As máquinas fotográficas são fracas de mais; os pincéis de Canaletto e de Guardi, ou (antes deles) de Carpaccio e de Bellini, conseguiram sugerir genialmente essa beleza: mas o que Veneza nos dá a ver – no momento real de ver – ultrapassa o plano do Sublime.
Uma das coisas que aprendi nestes dias em Veneza é que há muitas maneiras de ver. Todos nós achamos que estamos na posse da única atitude certa e a nossa reacção automática é desprezar a maneira de ver dos outros. Nos primeiros dias, do alto do meu convencimento intelectual, senti desprezo pelos turistas que pagam 100 euros por um passeio de gôndola e depois passam o tempo todo na gôndola a olharem para os telemóveis. Mas depois disse a mim mesmo: é a maneira deles de ver Veneza. Certamente diferente da de John Ruskin no século XIX, esse escritor que com maior perícia usou as palavras para descrever o acto de ver Veneza, ainda numa época anterior ao turismo massificado. Mas também aprendi a não idolatrar Ruskin, que escreveu ser difícil encontrar algo de mais imbecil e desprovido de originalidade do que a fachada de San Giorgio Maggiore (essa obra-prima de Palladio). Discordo em absoluto deste juízo.
Andar com o André em Veneza foi uma aprendizagem constante no que toca à atenção ao pormenor. Mais uma vez, o meu convencimento intelectual só queria saber dos grandes nomes como Tintoretto, Palladio ou Longena (arquitecto de Santa Maria della Salute); mas o André chamou permanentemente a minha atenção para os pormenores mais espantosos dos canais mais modestos. Aprendi com ele (que já conhecia Veneza) a ver Veneza no seu todo.
Viajar a dois é, consabidamente, um risco: uma viagem tanto tem o poder de fragilizar um relacionamento (aliás Wagner morreu em Veneza de ataque cardíaco na sequência de uma briga monumental com a mulher), como tem o poder de o fortalecer. Mas, na verdade, nada fortalece tanto o elo entre duas pessoas como a possibilidade de partilhar algo que ambas amam. O André e eu descobrimos quanto amamos o inefavelmente espiritual Tintoretto; quanto somos capazes de amar duas igrejas tão diferentes no estilo como a gótica Madonna del Orto (que o André está a admirar numa das fotos que acompanha este texto) e a barroquíssima Santa Maria della Salute (que eu contemplo na outra). Descobrimos a paixão por todas as luzes sob as quais se vê a magnífica Basílica de San Marco e a paixão pelo valor pictórico de roupa estendida por cima de um canal.
Acima de tudo, descobrimos ambos como somos capazes de potenciar mutuamente, em Veneza, «esse prazer abençoado de ver». Esse prazer abençoado de ver Veneza.