Věra Chytilová e Ester Krumbachová, duas mulheres no centro da nova vaga checoslovaca
A Nova Vaga Checoslovaca é dos movimentos cinematográficos mais singulares e inovadores da história do cinema. Brotando durante um período da história da Checoslováquia em que reformas libertárias relaxaram restrições à expressão artística, explodiu com filmes que encantam e surpreendem-nos até hoje. Existe muito para explorar dentro deste movimento fascinante, mas o que gostaria de me focar aqui é algo que é regularmente ignorado nas narrativas da História do Cinema existentes, mais especificamente sobre a Nova Vaga Checoslovaca: o facto de duas mulheres serem membros centrais do seu núcleo criativo. Estas duas mulheres são Věra Chytilová e Ester Krumbachová.
Věra Chytilová é um nome que já tem vindo a ser redescoberto, depois de um longo período de passar despercebida em discussões sobre a Nova Vaga Checoslovaca. Começou a carreira como script girl, fotógrafa e modelo (uma experiência pessoal que influenciou as suas crenças políticas e se refletiu ao longo da sua filmografia), antes de ingressar na FAMU, a Escola de Cinema de Praga (instituição onde a maior parte dos cineastas da Nova Vaga se formaram). O seu primeiro projeto foi U stropu je pytel blech (título em inglês: There’s a Bagful of Fleas at the Ceiling, 1962), a junção de duas curtas-metragens que contam as histórias de mulheres que se revoltam contra um sistema dominado por homens, o primeiro sendo sobre trabalhadoras fabris e o segundo sobre uma modelo (este último sendo muito baseado nas experiências pessoais da realizadora). A sua primeira longa-metragem, Algo Diferente (1963), também retrata histórias sobre mulheres, desta vez contando a história paralela de uma dona de casa e de uma ginasta de alta competição, ligando-as pelas suas frustrações, diferentes, mas de natureza semelhante, ambas encontrando-se em meios dominados por homens. Nesta primeira fase da sua filmografia, Chytilová explora uma estética mais ao estilo cinéma vérité. No entanto, já apresenta uma tendência para experimentar com imagem e montagem, seja com a intercalação de histórias paralelas ou através de sequências imersivas e criativas na sua construção.
“Não dizer a verdade devia de ser ilegal!” – Věra Chytilová
Ester Krumbachová é um nome muito mais desconhecido, muito pela maldição que afeta os argumentistas, que recebem muito menos reconhecimento relativamente aos realizadores (algo muito provavelmente intensificado, neste caso, pela forma sistemática com que as mulheres são ignoradas na História do Cinema). Apesar disto, ela não é menos importante na História da Nova Vaga. Licenciada em Belas Artes, começou a sua carreira como cenógrafa e figurinista de teatro, algo que influenciou a sua estética característica. Mais tarde, começou a trabalhar em cinema e a desenhar os cenários e o guarda-roupa de diversos dos primeiros filmes da Nova Vaga Checoslovaca, tal como Noites de Diamantes (1964) de Jan Němec, uma representação extremamente crua da experiência de dois rapazes judeus que fogem de um comboio que os transportava para um campo de concentração. Ao mesmo tempo também começou a escrever e teve o seu primeiro grande começo como argumentista com A Festa e os Convidados (1966), baseado num conto da sua própria autoria e realizado também por Jan Němec. Este filme é um perfeito exemplo da capacidade de Krumbachová de usar alegoria e surrealismo de uma forma irreverente e subversiva para atacar mecanismos de poder, contando uma história peculiar sobre uma sucessão de eventos relacionados com uma festa que, de uma forma extremamente ambígua e críptica (ao ponto de ser quase incompreensível), ataca a corrupção burocrática do governo checoslovaco.
A história destas duas mulheres converge no que é o filme mais famoso das suas respetivas carreiras e que é, talvez, o filme mais estrondosamente inovador de toda a Nova Vaga Checoslovaca – As Pequenas Margaridas (1966). Neste filme, estas duas criadoras juntam as suas forças para construir um filme que é tão disruptivo como é irreverentemente feminista. Com a proeza visual do cinematógrafo Jaroslav Kučera, As Pequenas Margaridas é uma explosão visual e uma autêntica experiência em (não) narrativa. Neste filme, tudo o que é tradicional é despojado e rejeitado a favor de uma fragmentação rítmica constante, onde a maior parte do trabalho de compreensão do significado das imagens observadas é deixado para o espectador interagir ativamente. O diálogo alegórico de Krumbachová e a capacidade peculiar de Chytilová de usá-lo como uma plataforma para a construção de maravilha visual misturam-se, criando o que só pode ser descrito como um filme que vai contra tudo e todos de uma forma inequivocamente feminista, com duas protagonistas que que agem como disruptores anárquicos de um mundo masculino que as tenta dominar. É importante sublinhar que Krumbachová não só escreveu o argumento com Chytilová, mas também desenhou os cenários e o guarda-roupa, dando ao filme a sua característica e atraente estética teatral.
Depois de As Pequenas Margaridas, estas duas artistas colaboraram mais uma vez no filme seguinte de Chytilová, Fruto do Paraíso (1970). Igualmente experimental, este filme segue a parábola de Adão e Eva, recontada da perspetiva de Eva e dos seus dilemas morais. É um filme encantador que desenvolve a experimentação colorida de As Pequenas Margaridas, apesar de não tanto explosivamente irreverente, que continua as temáticas relacionadas com a experiência feminina dentro de um mundo dominado pelo masculino, que dominam as filmografias de ambas as artistas. É interessante como, sendo a Nova Vaga Checoslovaca (tal como qualquer outro movimento cinematográfico) dominada pela perspetiva masculina, estas duas mulheres uniram-se para criar filmes centrados na perspetiva feminina completamente inovadores, filmes esses que são dois dos mais experimentais e originais do movimento. As Pequenas Margaridas e Fruto do Paraíso posicionam-se como duas obras-primas irreverentemente feministas que brotaram da Nova Vaga Checoslovaca e que merecem serem reconhecidas e revisitadas hoje.
Para além destas duas colaborações com Věra Chytilová, Ester Krumbachová também escreveu o argumento de dois outros filmes extremamente experimentais e avant-garde da Nova Vaga: Os Mártires do Amor de Jan Němec (1967), e Valerie e a Semana das Maravilhas (1970). O primeiro conta três histórias oníricas sobre amor e sexualidade frustrados e o segundo conta a história de uma jovem que, depois de ter o primeiro período, encontra-se num mundo de conto de fadas em que todos os adultos se revelam como sendo vampiros predatórios – claramente uma alegoria sobre a forma como raparigas e mulheres são sexualizadas e exploradas numa sociedade sexista – adaptado de um romance homónimo de Vítězslav Nezval. Ambos os filmes demonstram a estética surrealista de Krumbachová nos seus cenários e a sua característica fragmentação de narrativa, sendo também dois dos filmes mais importantes da Nova Vaga.
A História, e, mais especificamente, a História do Cinema, é contada de uma perspetiva centrada no masculino. Os cineastas que são colocados no centro da maior parte dos movimentos cinematográficos são recorrentemente homens. No entanto, apesar da adversidade que as mulheres enfrentam na indústria cinematográfica em todo o mundo, ambas Chytilová e Krumbachová não podem ser colocados noutro lugar se não no centro da Nova vaga Checoslovaca, como duas das mais importantes forças na sua criatividade ainda moderna e inovadora, fazendo isso através de filmes vincadamente feministas. Elas estão por trás de alguns dos mais importantes filmes do movimento, sendo o seu lugar de importância neste inquestionável. Věra Chytilová e Ester Krumbachová são duas mulheres que deixaram o seu impacto não só num movimento cinematográfico, mas na História do Cinema do mundo.
Crónica de Jasmim Bettencourt