Verticalidade do acontecimento
Após umas “mini” férias em que achei por bem fazer uma pausa de todo o tipo de escrita (e até de alguma literatura, deixando-me apenas mergulhar na pura poesia), tento voltar sem qualquer tema para crónicas. Ou para escrever, de maneira geral.
Na realidade há imensos temas para abordar – imensas situações que podem ser estudadas de um prisma sociológico, grupos de pessoas que podem mesmo ser estudadas do ponto de vista psicológico, ou até mesmo acontecimentos inéditos tão desligados da lógica mundana que o mero retrato fiel dos mesmos bastaria – como por exemplo, ter uma vizinha que por volta das dez e meia da noite teve a brilhante ideia de regar o cimento do passeio durante trinta minutos a fio – sim, trinta minutos; e sim, o passeio de cimento sem qualquer planta regável ou objeto lavável – talvez uma vendetta com o condomínio ou residentes do prédio, contudo uma escolha muito pobre e triste para tal. Ou de um homem, alcoolizado, que se prendeu desnudado na própria varanda.
Enfim, antes prefiro falar de nada. Sentar-me constantemente com o perene silêncio (ou antes aquilo que julgo ser o silêncio – uma ausência de barulho possível no cerne de uma cidade capital de distrito). Depois observo – ou se preferirem “coscuvilhar” ou “bisbilhotar” de certo modo, o que para um escritor acaba por ser parte do seu trabalho, portanto a nomeação é indiferente.
Toda a realidade empírica parte de algum lado, e a minha própria experiência não subsiste a necessidade de criar, daí a observação – mas esta realidade a que me submeto parece-me fina e ténue, como se pudesse quebrar a qualquer momento, por isso é que o meu regresso à escrita pareceu-me (e continua a parecer-me) insignificante. A mutabilidade do tempo e a sua constante passagem tornam as diversas realidades ao correr da situação como folhas de estanho de um chocolate derretido e amachucado na palma da mão, esperando um caixote do lixo, solidificando pedaços sujos. Algo outrora tão doce e que agora me provoca repulsa pelo chocolate – como se fosse um chocolate diferente.
Stig Dagerman num pequeníssimo mas belo conto deu-me a sensação de uma escassez ilimitada de todos os nossos atos de livre-arbítrio – “A vida é tão cruel que um minuto antes de matar uma criança um homem feliz ainda é feliz; que um minuto antes de gritar de horror, uma mulher pode fechar os olhos e sonhar com o mar; que durante o último minuto de vida de uma criança os pais dessa criança podem estar numa cozinha à espera que o filho lhes traga açúcar, enquanto falam dos dentes brancos dele e de um passeio de barco; e a própria criança, pelo seu lado, pode fechar um portão e começar a atravessar a estrada, trazendo na mão direita alguns torrões de açúcar embrulhados em papel branco e, durante esse último minuto, só ver um longo rio cintilante, grandes peixes e um barco grande com os seus remos silenciosos.” (Stig Dagermen no conto “Matar uma criança…” in “Jogos da Noite, ed. Antígona, 1992).
Cada escolha a favor de algo é também uma ação contra uma panóplia de possibilidades. Toda a realidade se constrói em prol de um livre-arbítrio que se vai afunilando face ao vínculo da escolha.
Os artigos indefinidos aqui utilizados não me parecem uma pura coincidência – a brevidade do conto conta também com a brevidade da vida, num absurdismo que separa todas as roldanas banais do dia-a-dia de um grande acidente catártico que levará o mecanismo habitual para bem longe. Um tal “acontecimento vertical”, a meu ver.
Esta indefinição que Dagerman utiliza entrega-nos também uma identidade pessoal com a qual nos podemos identificar – simultaneamente com o homem que mata a criança, a mulher que fecha os olhos para imaginar o mar e os abre perante um homicídio, os pais da criança distraídos com a banalidade quotidiana e a criança, embebida na paixão de um rio cintilante segundos antes de morrer. E este “identificar” a que me refiro vem a propósito de que nunca sabemos realmente qual dos “sapatos” podemos estar a calçar, já que nem sempre podemos prever as consequências dos nossos atos, especialmente dos mais banais e redundantes.
De um momento para o outro toda a horizontalidade cronológica se pode tornar num instante vertical – num “acontecimento vertical” – onde tudo ocorre, desde a morte de um pai, até um atropelamento de uma criança por distração ou simplesmente estar sentados ao lado do condutor-homicida – isto é, a perceção modificar-se o bastante para pôr em causa tudo, como no caso do conto de Dagerman – a felicidade de um homem se perpetuar numa densa culpa (advertindo constantemente de que não se trata de um “homem mau”, mas de um homem banal que mata uma criança).
Talvez não haja nada para escrever porque está tudo a acontecer verticalmente. E para que se escreva requer-se um certo afastamento da situação, para se ver com clareza tudo o que ocorreu – desconfio dos escritores e poetas que escrevem na ressaca do acontecimento, porque a memória ainda não alumiou tudo o que se sucedeu.
Voltarei a escrever conforme a sede me ditar.
“Depois, tudo é tarde demais. Depois, um automóvel azul parou atravessado na estrada e uma mulher tira a mão da boca aos gritos, e a mão surge a sangrar. Depois, um homem abre a porta do carro e tenta aguentar-se de pé apesar do abismo de horror que sente dentro de si. Depois, ficam alguns torrões de açúcar absurdamente misturados ao sangue e à areia, e uma criança jaz, inerte, de barriga para baixo, com o rosto brutalmente esmagado contra o piso da estrada. Depois, dois seres pálidos, que ainda não tiveram tempo de tomar o pequeno-almoço, saem de um portão a correr e aquilo que veem, na estrada, nunca esquecerão. Porque não é verdade que o tempo cure todas as feridas. O tempo não cura as feridas de uma criança morta, e dificilmente pode curar a dor de uma mãe que, porque se esqueceu de comprar açúcar, mandou o filho pedir algum emprestado do outro lado da rua; e não cura melhor o remorso do homem que, até então feliz, matou a criança.” (Antígona, 1992).
Assim, na verticalidade de toda a tragédia, a dor é tamanha que jamais qualquer horizonte de tempo pode curar – assim como jamais me libertarei do trovão que anunciou a morte do meu pai, de onde uma simples fechadura que ecoou no absoluto silêncio me rasgou o peito e nunca me permitirá um segundo mais de silêncio, numa perpetuação eterna.
A verticalidade do acontecimento de que aqui falo é uma distensão do tempo cronológico que os nossos relógios marcam, uma estagnação do horizonte – uma mutação. Mas é também o alcatrão do tempo que entrega a vida – a biografia.
Crónica de Márcio Luís Lima
O Márcio Luís Lima é de Viana do Castelo e da colheita de ’98. Licenciado em Filosofia (atual mestrando) na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Um apaixonado por boa literatura, de preferência no recanto mais sossegado da varanda ou numa esplanada a meio gás.