Vice-campeões

por Leonardo Cruz,    13 Agosto, 2022
Vice-campeões
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Nem sei bem como aconteceu, mas ali estava eu: bola no pé, cabelo ao vento, apenas o guarda-redes pela frente. Dou um ligeiro toque preparando o remate e rezo a Eusébio — aí vai disto.

A verdade é que nunca tinha estado num jogo desta importância. Ainda para mais na posição de poder brilhar, fazer o golo, trazer a alegria ao povo de Uma Aldeia nos arredores da Minha Terra. Era na sua coletividade que passávamos muitas tardes da adolescência, motivados por minis baratas, suculentas bifanas, ferrugentos matraquilhos, condições perfeitas para a prática do chinquilho. Melhor: gente boa que não se importava com o barulho e a algazarra que trazíamos. E foi a sua “Associação de Melhoramentos” que eu e o meu grupo de amigos decidimos representar no prestigiado torneio de Futebol 7 de Outra Aldeia, também na região. Digo “prestigiado” sobretudo porque foi a única competição deste tipo em que participei.

A equipa não era má: tinha malta que praticava penalties numa base diária sendo, por isso, capaz de ingerir gasosas imperiais em menos de 2 segundos; indivíduos que se defendiam bem contra 3 ou 4 garrafas de vinho no bucho, sem problemas de maior; e quem conseguisse atacar um presunto inteiro acompanhando duas carcacinhas de pão, modéstia à parte que me toca. E um ou outro que dava uns toques na bola. O treinador era, em poucas palavras, único. Alguém que foi para nós um autêntico professor. Mais na destrinça e experimentação de algumas substâncias menos lícitas do que nas questões técnico-táticas do chamado ludopédio, do qual percebia pouco mais que zero. À troca das lições, ensinámos-lhe algumas frases para gritar do banco de suplentes, na tentativa de evitar que fizesse fraca figura. Uma das principais era “mais pressão”, que tanto gritava com e sem bola, o que o fazia parecer um estratega à frente do tempo do gegenpress; da panóplia das suas instruções mais populares consta “centra em arco, remata em flecha”, uma manobra tática Robin Hoodesca que ainda hoje é deveras mencionada, mais de vinte anos depois, nomeadamente por mim. “O jogo está muito mastigado a meio campo!” — aí está outra expressão que aprendera naqueles dias e que não se coibia de berrar para o pelado, estivesse a ação a decorrer onde fosse. Também acontecia, não raras vezes, repetir o que ouvia do treinador adversário, mesmo que este se insurgisse contra o juiz da partida apelando: “é falta!”.

Usava gravata por cima da camisola de jogo, não obstante o cuidado de deixar sempre visível o patrocínio de um posto de abastecimento de gás de petróleo liquefeito para automóveis ligeiros, e óculos escuros em todas e quaisquer condições atmosféricas e independentemente da posição em que o planeta se encontrava face ao Sol. Em momentos de maior tensão no banco (ele conseguia perceber sempre se estávamos a ganhar ou a perder) tentava enrolar cigarros só com uma mão, usando a disponível para fazer sinais aleatórios aos seus pupilos. A vida não lhe foi facilitada porquanto tivemos que esclarecer, logo no início, que naquele tipo de torneio o onze era composto de sete jogadores. Melhorou quando se apercebeu que só tínhamos um guarda-redes, pelo que só tinha que escolher seis. Acabámos por ser nós, os jogadores, a escalar a equipa, o que me levou de imediato para o último lugar das reservas (gorando-se a única hipótese que teria de ser titular, i.e., se a escolha fosse feita pelo “técnico”, de preferência num sábado à noite e através do modus operandi conhecido como “ao calhas”).

Definiu-se então o sete inicial, composto por 1 keeper, 2 defesas-centrais, 2 alas, um médio-centro e um ponta de lança. A jogada típica era “sair a jogar” — note-se que Pep Guardiola ainda era jogador naquela altura, de modo que não havia sido ainda inventado o Tiki Taka. Por norma o esférico era distribuído pelo Redes a um dos Centrais que, de cabeça levantada, seguia tranquilo, em posse, esperando o aperto do adversário. “Eles que corram” poderia ser o lema, enquanto o mister já gritava “mais pressão” aparentando dar instruções também aos adversários — são assim os grandes apaixonados pelo desporto-rei. Logo que os avançados contrários se aproximassem da chincha, esta era de imediato colocada em Rio, que bem podia ser o nome de um “número dez”, um “regista”, um “distribuidor de jogo” ou um “carregador de piano”, mas trata-se de um mero eufemismo para a pequena ribeira que circundava um dos lados do retângulo de jogo (e reparo agora que “circundar um dos lados” tinha categoria para ser um dos leitmotive do nosso líder). Era no lançamento lateral do oponente que residia grande parte da nossa estratégia: pressionar o receptor da bola enquanto esta vinha pelo ar, recorrendo a céleres e cirúrgicas caneladas e, assim que o esférico tocasse o chão, tentar chutá-lo para os homens da frente.

Os dois primeiros jogos foram ultrapassados com inesperado sucesso: duas vitórias incontestadas. Apesar do êxito, no final da segunda partida ocorreu uma ligeira altercação no balneário (e só quem esteve num é que sabe que estas coisas acontecem, como é o meu caso, que passei dias da minha vida num balneário, “mormente” estes em que durou este torneio). Alguns jogadores exigiam mais tempo de jogo ou, no meu caso, algum. Por insólita razão que a própria estupidez questiona eu achava, naquele momento, que deveria também participar no campo, e não só a mandar piadas e a festejar os golos no banco. Ficou combinado entre todos que, no terceiro e decisivo confronto, os menos utilizados teriam, enfim, a sua oportunidade. Pese os 6 pontos obtidos e a previsível passagem à fase das eliminatórias, uma terceira conquista permitir-nos-ia defrontar uma equipa mais acessível nos quartos-de-final. Com o resultado empatado e faltando apenas 5 minutos para o final do tempo regulamentar, porventura por obra de qualquer resquício de conteúdo psicotrópico no sistema nervoso central do manager, fui “instruído” para entrar. Não tanto por tradição quanto por questões relacionadas com talento e espaço corporal, sempre joguei no centro da defesa. Porém, alguns colegas mais ambiciosos ou menos corajosos (não consegui perceber) suplicaram ou ordenaram: “vai lá para a frente!”.

Foi neste contexto que a redondinha, que parecia perdida na frente direita do ataque (onde um colega avançado estava rodeado por três adversários), me chega aos pés vinda daquele emaranhado, quase obra do divino. E ali estava eu: bola no pé, cabelo ao vento, apenas o guarda-redes pela frente. Dou um ligeiro toque preparando o remate e rezo a Eusébio — aí vai disto. Puxo a perna direita atrás inclinando a barriga para baixo, tal qual Jorge Perestrelo ensinava nos seus relatos radiofónicos. Olho o keeper nos olhos, sem medo, uma águia concentradíssima momentos antes de atacar a presa, sustenho a respiração e agora é que aí vai disto. O guarda-redes sai na minha direção e penso “devo tentar fintar?”, “como é que isso se faz?”, “porque é que eu me meti nisto?”, “caraças, há pessoas a ver”, “os pais dos meus amigos, aqui”; tento esquecer a angústia do desajeitado avançado na hora deste autêntico penalty em movimento (e no peito dos desajeitados também bate um coração); falo comigo mesmo, “que se lixe, anda bater, tu não bates bem” (nesta época ainda o CR7 jogava à bola na Madeira!), o guarda-redes cada vez mais perto, é este o momento, não tenhas medo de ser feliz, Leonardão, ainda há dias leste um livro do Deepak Chopra que o mister te emprestou e que dizia para acreditares mais em ti; crê, miúdo, tem fé, sonha, pula e avança, vamos, agora é que é, AÍ VAI DISTO!

O som do pé tocando a bola não foi bem aquele que esperava. Soou frouxo. Mas o que é certo é que foi “bola para um lado, guarda-redes para o outro”, disso ninguém teve dúvidas.

Ouve-se um bruá nas bancadas, minto, não havia bancadas, alguém grita “GOLO!”, os meus colegas no banco levantados, um deles corre na linha lateral, parece vir na minha direção… não entra no terreno de jogo. Dirige-se à linha de água que ladeia o campo.

Bola em Rio.

Só poderia ser retirada com um “pesca-bolas” (estava a ver que não conseguia uma referência à Liga dos Últimos). A boa notícia é que poderíamos novamente praticar a nossa jogada tática mais reconhecida: o lançamento lateral. A é que não foi golo (apercebo-me que o grito que ouvi, afinal, era alguém a dizer “tolo”).

Disseram-me mais tarde que falhei “um tento isolado”; a verdade é que, no momento de rematar, me senti, de facto, um pouco só. E se tivesse tido a companhia de alguém? Penso muito nesse “golo” ainda hoje. Já o falhei várias vezes em sonhos. Se a bola tem beijado as redes, como diria o poeta, talvez fosse hoje outra pessoa: mais confiante, assertivo, menos ansioso. O homem que as mulheres amam e os homens invejam. Se ao menos aquela baliza fosse maior.

O progresso da equipa não foi, contudo, prejudicado por este percalço. Por um lado, porque acabámos seguindo até à final; por outro porque nunca mais pedi para entrar. Vendo bem, é capaz de existir aqui uma relação de causa-efeito. No derradeiro jogo chegou a única derrota contra uns miúdos todos atletas que iam para ali para “jogar a sério” (que falta de noção). Eles levaram uma taçazeca, é certo, mas nós tivemos o melhor prémio: uma grade de minis e um presunto, oferecidos pela Associação de Melhoramentos de Uma Aldeia, que nos prometera a recompensa caso superássemos a fase de grupos. Tendo atingido a final, mais uma grade de minis foi ofertada, o que nos soube melhor do que qualquer “orelhuda”. Depois de uma volta à cidade com os carros a apitar chegámos à sede da colectividade com o nosso mister em ombros cantando a uma só voz: “vice-CAMPEÕES, vice-CAMPEÕES, nós somos vice-CAMPEÕES!”

Enquanto saboreava o merecido lanche, dei por mim a pensar na vida. Mais Homer Simpson, menos Deepak Chopra, dedica-te ao que fazes bem, rapaz. Piquei mais uma talisca de presunto e abri outra cerveja. Consegui molhar o chão todo.

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