“Vice” é um filme necessário
Normalmente olhamos com mais atenção para o grande orador exibicionista, tomando-o como mais perigoso. Mas será que é esse o caso? Será que o homem mais perigoso não é o mais barulhento, mas sim o mais silencioso? É esta questão que Adam McKay analisa em Vice, através da figura obscura de Dick Cheney, ex-vice-presidente dos EUA, que muitos nunca prestaram muita atenção, especialmente por causa da escandalosa figura de George W. Bush. Vice faz com que olhemos para a história de um ponto de vista diferente, e alcança isso de forma inteligente e criativa.
McKay conta a história da subida ao poder de Cheney de uma forma não-linear, o que pode tornar o filme confuso. No entanto, fá-lo de uma forma extremamente inteligente (apesar de às vezes essa forma não-linear ser um pouco exagerada e desnecessária). Através desta não-linearidade, o cineasta consegue fazer um estudo de caráter deste homem mais profundo, ligando vários pontos da sua vida de forma engenhosa, permitindo que o espectador tenha uma visão mais complexa e panorâmica desta figura histórica. O realizador norte-americano também intercala episódios da vida de Cheney com imagens metafóricas que dão uma dimensão diferente e mais original ao filme.
No entanto, por vezes, McKay bombardeia-nos com tanta informação — principalmente através do uso de uma edição rápida — que poderá fazer com que o filme seja menos acessível e mais pesado em termos do seu conteúdo informativo, tornando-o menos compreensível para quem não esteja tão familiarizado com política americana. Apesar disso, Vice tem uma mensagem extremamente importante que nos faz pensar. Através da história deste homem maquiavélico, conseguimos perceber melhor o que está a acontecer atualmente.
Já Christian Bale é perfeito como Dick Cheney. O actor desaparece completamente por trás dele — e não é só por causa da caracterização —, Bale incorpora perfeitamente o silêncio calculista e perturbador de Cheney, numa das melhores performances do ano e da sua carreira. O mais brilhante na performance de Bale é que não se limita a retratar um vilão, mas sim um ser humano com quem é possível simpatizar — o que torna a sua performance ainda mais assustadora.
Amy Adams também tem uma interpretação excelente como Lynne Cheney, mulher de Dick Cheney, uma personagem interessantíssima. Digo interessantíssima, não pelo caráter da mulher (que não podia ser mais desinteressante), mas sim pelo seu papel como exemplo de uma mulher que contribui para a manutenção e agravamento de uma sociedade machista e chauvinista. Este filme funciona como uma chamada de atenção, principalmente com os paralelismos que são facilmente encontrados entre Dick Cheney e o vice-presidente americano atual, Mike Pence. Todos os dias lemos e ouvimos novas notícias escandalosas sobre alguma coisa que o presidente dos EUA disse ou fez. Ouvimos o nome dele trezentas vezes por dia (tanto que pouparei a repetição do seu nome nesta crítica). Mas talvez estejamos a olhar para o homem errado. Talvez devamos olhar para o homem silencioso que é Mike Pence. Talvez ele seja o verdadeiro perigo. E fazendo uma pesquisa rápida no Google é fácil encontrar razões para ficarmos alarmados.
Para além disso, McKay não se limita a fazer juízos de valor contra Cheney — nem o retrata como um vilão unidimensional. O próprio espectador é envolvido no filme e na crítica do cineasta. A nossa cumplicidade na subida ao poder de homens como Cheney, que ameaçam diretamente a nossa democracia, é nos revelada e acusada, fazendo com que Vice seja uma verdadeira chapada para quem o vê.
Vice é um filme extremamente importante que, apesar de ter as suas falhas, triunfa em funcionar como um moscardo que nos pica, chamando a nossa atenção. Pode ter uma tendência política, o que o filme não esconde e é consciente disso — até porque não é possível fazer algo sem ter qualquer forma de tendência política —, mas conta uma história necessária que não deixa de conter verdade. É um filme que deve ser visto por todos nós. Após ver Vice, é necessário decidir se queremos continuar a ser enganados por homens (e mulheres) como estes, ou se queremos começar a tomar mais responsabilidade nos nossos deveres políticos como cidadãos de uma democracia. A mudança está nas nossas mãos. É necessário não morder o isco do homem silencioso.Crítica escrita por Jasmim Bettencourt
Nascido em 1998 e natural de Sintra, Jasmim Bettencourt está atualmente a fazer a Licenciatura em Estudos Gerais na FLUL e tem ambições de se tornar cineasta e dedicar a sua vida à sétima arte, que é a sua grande paixão.