Viciados? Na série “Rabo de Peixe” sim, na cocaína é que não!
Atenção pais, irmãos mais velhos, professores e amigos: este é o grande momento para falar sobre cocaína aos jovens portugueses. De olhos postos na série “Rabo de Peixe”, miúdos e graúdos terão, nas próximas semanas, o imaginário recheado de paisagens açorianas, uma trama de faca e alguidar e, claro está, de cocaína.
O cinema permite-nos testemunhar intimamente a vida dos outros, transportando-nos muitas vezes para um espaço e um tempo muito diferentes da nossa realidade quotidiana. As séries, por serem mais longas, mergulham-nos de forma ainda mais imersiva. Damos por nós com a sensação de conhecer os personagens de ginjeira, o bairro onde vivem e, quantas vezes, choramos e doemo-nos pelas suas dores, em uníssono. Um exercício de empatia, no fundo.
Esta série pode ser vista de forma mais ou menos compulsiva. No meu caso, confesso que fui cedendo à tentação de ver “só mais um” episódio, seguindo-se o já gasto “agora é mesmo só mais um”. Eu, que tanto pratico com os meus doentes técnicas para adiar a gratificação imediata, que tanto faço treinos de prevenção de recaída, acabei por tragar a série inteira num magnífico binge de 2 dias. Compulsivamente, portanto.
Cheguei ao fim cheia de orgulho nesta mega produção nacional. Fiquei agarrada à história, aos atores, à fotografia e à música, viciada na alternância entre o suspense e o aliviar de tensão, desejosa por desvendar o próximo plot twist. Enquanto psiquiatra que trabalha na área das dependências, agradou-me o facto de não haver em “Rabo de Peixe” uma romantização do mundo da droga: pelo contrário. A cocaína irrompe pela ilha sem bater à porta, e pelo caminho destrói tudo em que toca. Vemos gente que morre a tiro, que morre de overdose, e acompanhamos a escalada da dependência em alguns dos protagonistas: cocaína porque estou triste, cocaína porque há razões para celebrar, cocaína “porque aqui nunca acontece nada de jeito”. É uma droga democrática, que não faz qualquer distinção entre idade ou classe social: vemo-la nas mãos dos pescadores, da juíza, do traficante, do médico e até do padre. Além disso, como nos mostrou este episódio verídico e caricato da história da ilha de S.Miguel, a facilidade de acesso à droga importa. Quanto mais disponível, mais pessoas terão a sua primeira experiência com a substância.
No mundo da droga há uma expressão sobre a cocaína que os meus doentes repetem muitas vezes. “É gulosa”: quer sempre mais e mais, e nunca nada lhe chega. Dizem também que é “a pior amante que se pode ter na vida”: suga-te o dinheiro todo e ainda acabas sem trabalho e sem família. Não é fácil deixá-la, mas cá estamos nós para ajudar a reparar os escombros e reconstruir uma vida livre de cocaína.
Em Rabo de Peixe de 2001, a cocaína encontrou uma população muito pobre, na sua maioria alheia aos perigos ou até mesmo à existência da cocaína. Experimentava-se a droga de olhos fechados. Hoje, esperamos encontrar em Portugal uma população mais alerta e informada. E é justamente neste campo que acredito que a série pode ter um papel muito importante: para abrir um diálogo com os jovens acerca das drogas e seus descontentamentos. À boleia deste pretexto (e que belo pretexto!) temos uma janela de oportunidade para uma excelente intervenção de educação para a saúde.
Com intervenção ou sem intervenção, a série por si só já nos ensina alguma coisa: o Eduardo, o grande herói da saga, nunca toca numa ponta de cocaína! My boy Eduardo…