Vícios públicos, virtudes passadas

por Davide Pinheiro,    7 Fevereiro, 2021
Vícios públicos, virtudes passadas
Marilyn Manson / Fotografia de Andreas Lawen, Fotandi
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No primeiro festival Sudoeste, em 1997, Marilyn Manson, não era apenas cabeça de cartaz como os Blur e os Suede. Ele era a atracção, como um número de circo. Do circo do horror. Falava-se de rituais satânicos. De galinhas mortas em palco. Aliás, o sacrifício de animais é um dos vários ritos do bestiário do Anti-Cristo. Na verdade, a história passou-se em janeiro de 1994 no Texas quando Manson trouxe uma galinha enjaulada para o palco e, de seguida, a libertou. “Sê livre”, terá dito. E o animal fugiu entre a multidão. Pelo menos, é este o relato, mas anos de mitos e lendas amplificaram-no à dimensão de facto.

Numa era sem redes sociais para decepar as fronteiras entre o espaço público e o privado, os limites da ficção não eram determinados por uma câmara de telemóvel. Manson, o ex-futuro jornalista musical, foi inteligente na construção de uma personagem cínica, idealizada para uma América inerte, à espera de cumprir o sonho. Inspirando-se na imagética de David Bowie e dos Kiss, devedor da herança pesada dos Nine Inch Nails — Trent Reznor foi não só referência, como produtor do inaugural Portrait of an American Family, editado pela sua Nothing Records —, pintou quadros grotesco para provocar ondas de choque. Tirou o retrato da família média americana, obesa e anestesiada pela cultura televisiva. E deixou-nos um punhado de álbuns centrais para compreender a importância do rock na década de 90, quer como fonte de angústia adolescente, quer como alimento para debates mediáticos sociogeracionais.

Manson foi possível num tempo em que as personagens viviam de facto, num mundo à parte alimentado pela idealização. Pelo estímulo da curiosidade sobre aquilo que nos era restrito e negado. Por querermos saber se era real ou fantasia; se por baixo da maquilhagem, Manson e Brian Warner eram um só ou se um era o vilão e o outro apenas o criador. Nessa época de estrelas inacessíveis e inatingíveis, Manson desenvolveu hábitos de abuso, tolerados e estimulados por uma cultura hierarquizada de superioridades. Sobre mulheres, namoradas ou fãs (groupies) e jornalistas, como se pode ler numa cronologia elaborada pela Pitchfork. Após vários depoimentos acusatórios ao longo dos últimos anos, a ex-noiva Evan Rachel Wood acusou Manson de violência sexual e psicológica. Testemunho sustentado por outras quatro mulheres e confirmado por Dan Cleary, um antigo tour manager, que além de corroborar a versão da actriz, o caracteriza como um “músico brilhante, um homem incrivelmente inteligente e engraçado” mas também “um viciado em drogas, uma pessoa abusiva mentalmente e fisicamente, que tem a capacidade de ser muito gentil ou impulsiva”.

Acto contínuo, a editora Loma Vista, pela qual editou os mais recentes dois álbuns, dispensou-o de imediato. A agência CAA, representante de Cristiano Ronaldo e Beyoncé, entre outros vultos, também. A série American Gods, na qual vestiu a pele de vocalista de banda death metal num episódio, apagou-o. E o episódio gravado para uma outra série, Creepshow, já não será exibido. A carreira de Marilyn Manson poderá continuar nos tribunais ou na imprensa, mas como músico, a performance terminou. Os actos relatados são condenáveis e têm de ser julgados mas deve a obra ser julgada em função de comportamentos tidos na esfera privada? Haverá uma fronteira entre o artista Marilyn Manson e o cidadão Brian Warner? Pode a história ser reescrita como no caso do episódio já transmitido da série American Gods?

Em dezembro do ano passado, Ryan Adams editou Wednesdays, o primeiro álbum pós-acusações de abusos sexuais por sete mulheres, entre as quais a ex-mulher Mandy Moore e Phoebe Bridgers, figura emergente do indie americano. Adams negou tudo mas, alguns meses depois, acabou por pedir desculpa pelo comportamento predatório em longa carta aberta. Já este ano, o FBI ilibou-o das acusações de conduta sexual abusiva. E a carreira, como a conhecíamos, terminou aí. Um álbum novo de Ryan Adams daria capas, entrevistas ou críticas na Rolling Stone, na Billboard, na Pitchfork ou, em Portugal, na Blitz. Uma rápida pesquisa revela que apenas o NME noticiou a sua existência. Mais uma vez, é necessário fazer a pergunta. É justo cancelar o escritor de canções Ryan Adams por actos reprováveis cometidos, já reconhecidos pelo próprio, ou Ryan Adams tem, como qualquer outro cidadão, o direito à remissão? Quais são as linhas vermelhas entre um e outro? E a questão podia estender-se a Michael Jackson, Woody Allen, ou a todos os filmes produzidos por Harvey Weinstein…

As regras do jogo mudaram. As virtudes públicas que alimentaram os vícios privados do Marilyn Manson incendiário, são agora os vícios públicos que reprovam as virtudes passadas do mesmo Marilyn Manson queimado na fogueira. O culto da personalidade que fez do Anti-Cristo o desejado foi morto pelo culto do anti-corpo. Tudo indicia que as acusações são verdadeiras e agressões verbais como “fantasio todos os dias sobre esmagar o crânio dela com uma marreta”, ditas durante um breve período de separação de Evan Rachel Wood, só atiçam o julgamento mediático, mas deve também a música ser condenada, através do silêncio?

Na esfera mediática, como em tantas outras da sociedade, há um quadro irreversível de mudança. Por isso, estamos todos a aprender a lidar com novas questões, colocadas por revisões de valores morais, culturais, sexuais, raciais e ambientais. Ainda não temos todas as respostas necessárias, mas precisamos deste debate para as achar.

O “cancelamento” de Marilyn Manson surge na mesma semana em que Morgan Wallen, recém-líder da tabela americana de vendas e voz em grande ascenção na conservadora mas poderosa província do country, foi dispensado pela editora e silenciado pelas rádios devido a um comentário racista. E no entanto, ela move-se.

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