“Vida Nova”, de Manel Cruz: a expressão do belo no essencial
António Lobo Antunes referiu por diversas vezes que, na sua procura incessante pela sua voz na escrita, rasgou inúmeros manuscritos dizendo em surdina, ou não, “ainda não é isto, ainda não é isto”.
Depois de três bandas (Ornatos Violeta, Supernada e Pluto) e de um projecto próprio com uma multidão de colaboradores, Manel Cruz viu-se a braços com uma rotina criativa interrompida e com uma certa indefinição do que era profissionalmente. Se por um lado as artes gráficas são a área em que se sente à vontade, por outro, a música é onde se liberta. E é nesta encruzilhada que, vários anos volvidos após o lançamento de “Nada é Possível” dos Supernada, Manel Cruz se obriga, durante quatro meses, a fazer do estúdio o seu escritório e a criar músicas, todos os dias, dizendo para várias vezes – calculamos nós – “ainda não é isto” e a, gradualmente, encontrar a sua voz, a sua escrita e algo que sente como verdadeiramente seu. O resultado está no primeiro álbum em nome próprio, “Vida Nova”, um conjunto de 12 canções compostas maioritariamente em ukelele. A sonoridade é tão simples como o instrumento, sem que esta simplicidade torne a composição banal ou pouco interessante. Não tem o experimentalismo de Foge Foge Bandido, mas tem-lhe a base em certas cadências, na percussão e nas letras, mais fragmentadas.
A intenção de “Vida Nova” é definida na canção que abre a música “como um bom filho do vento”, onde Manel Cruz canta “um outro homem, uma outra vida (…) ando a ver se me invento”, dando o mote para as 11 canções que se seguem.
Não encontramos, em cada uma das músicas, a rima fácil ou os temas banais, mas a humanidade e as dores de crescimento provocadas pelo passar dos anos e pelas dúvidas que nos assolam, a cada um de nós. Como quando o ouvimos versar sobre a coragem em “Anjo incrível”, sobre a independência natural da mulher em “O navio dela” ou sobre o quão avassalador é o amor, todos os tipos de amor. É em “Cães e Ossos” que temos a lírica mais complexa de todo o álbum, com Agostinho da Silva a dar o mote a uma desconstrução imagética do que é Deus.
As letras de Manel Cruz cresceram com a vivência do autor e a luta pelo desfecho, pelo resultado que lemos e ouvimos nesta Vida Nova, está presente e é palpável. Não se sentem quebras, ou momentos menos conseguidos, sente-se a humildade do processo. A última canção começa com “depois de passada a prova, penso em vida nova”, numa sugestão que a voz foi encontrada, e que as tormentas do “ainda não é isto” deixaram de existir.
“Vida Nova” surge-nos sob a forma de livro, de capa branca, com as 8 letras do título a negro, numa perfeita antítese com o turbilhão de imagens e de letras manuscritas em paredes no interior do livro. Não é um disco imediato, é para se ir descobrindo, ouvindo, na aparente simplicidade melódica, na aparente simplicidade lírica e observar como ambas se intrincam e navegam na complexidade da Vida Nova de Manel Cruz, que se consolida como um dos maiores cantautores da música portuguesa.