Vidas de conveniência
Uma das coisas mais estúpidas que a Câmara de Lisboa fez no mandato deste médio-menos que por ora vai ao leme foi mexer no horário de funcionamento das lojas de conveniência, há coisa de três ou quatro anos, obrigando-as a fechar às 22:00 em vez das 24:00. Pensemos no conceito de conveniência e em como encurtar um horário de uma loja o pode servir. Let it sink.
Diz-se que foi para evitar que as pessoas bebessem na rua e por isso causassem desacatos. Para nos controlar. Para nosso próprio bem, claro. Pouco tempo depois de a câmara avançar com este horário o Minipreço passou a encerrar às 23:00. Um supermercado a fechar mais tarde do que uma loja de conveniência. Mais uma acha para a fogueira da óbvia necessidade de reformular o conceito de conveniência.
Adiante. Como os meus cinco leitores decerto já se aperceberam, a minha tolerância para com as políticas desta Câmara de Lisboa está ao nível da tolerância ao insulto racista.
Para mim e para muitos lisboetas, as lojas de conveniência, ou lojas dos indianos – como amiúde nos referimos a elas – são parte integrante da vida citadina e das rotinas que a compõem. São o tabaco a meio do dia, um snack a caminho de casa, uma garrafa de vinho para o jantar. Mas são também um pequeno grande mistério: não se percebe – ou pelo menos eu não percebo – como fazem dinheiro e – para mim o maior mistério de todos – não se antevê o que possam fazer as pessoas que lá trabalham quando não estão a trabalhar.
São Indianos. São paquistaneses. São muito semelhantes fisicamente e, do meu ponto vista ingénuo, vestem-se de forma muito parecida. Mas sob a aparente homogeneidade há decerto vida; uma vida, individual e indivisa, talhada milimetricamente à medida do corpo do seu utente. E não fazemos ideia – ou pelo menos eu não faço – do que consistem essas vidas, e os homens e mulheres por detrás do balcão ficam reduzidos à categoria de funções pelas quais o nosso dia calha a passar.
O facto de frequentemente terem dificuldades em exprimir-se em português decerto condicionará a forma como comunicamos. São uma comunidade relativamente fechada, dão-se maioritariamente uns com os outros e parece ser difícil encontrar intersecções de interesses que permitam desenvolver uma conversa e, a prazo, uma ligação para lá do âmbito e do registo da loja.
Na minha rua há uma média de uma loja de conveniência a cada quatro lojas. A não ser que não tenham Ventil, costumo ser fiel a uma, não por acaso a que fica mais perto da minha casa. Por vezes pergunto a um dos rapazes que lá passam dez ou doze por dia o que estão a ouvir ou o que estão a ver (quando não calham estarem numa chamada telefónica e trocarmos dinheiro e tabaco através de gestos). Às vezes respondem-me imperceptivelmente, de olhos postos no chão, e eu guardo o troco, finjo que me interesso fugazmente por uma mancha na parede e saio sorrindo e acenando. A maior parte das vezes e à maior parte das perguntas fico sem respostas.
Vejo-vos muitas vezes a falarem uns com os outros ali na rua. Em que língua falam? Falam todos a mesma língua?
Não perceber.
Mas uma vez por outra calhamos a entalhar mais de um minuto de conversa.
Falo bengali. Eles também.
Eu não sei nada de bengali. Assim como não sei nada ou praticamente nada destas pessoas que vieram para Portugal para terem uma oportunidade de viverem uma vida melhor. Mas de certo modo sinto a obrigação de me desviar do caminho paralelo e seguro que traçamos para não embater no desconhecido que são os outros – e, muito especialmente, os outros que mais contrastam connosco – e de me atrever a meter conversa, à espera de que de cada vez perca mais tempo na loja de conveniência só no paleio.
Esta crónica foi publicada originalmente no jornal Hoje Macau, tendo sido aqui reproduzida com a devida autorização.