Vindimar é cultura e também uma arte
Desde que comecei a publicar algumas fotografias da região do Douro e, depois, da vindima, o Rui André Soares da Comunidade Cultura e Arte (CCA) mostrou-se sempre atento e curioso. Talvez pela surpresa de estes locais e estas pessoas não aparecerem regularmente nos feeds (já lá vamos), ou por elas sugerirem trazer consigo algumas histórias por contar.
Entretanto, passaram-se três vindimas (é assim que se contam os anos na gíria vinícola) e, há umas semanas, o Rui desafiou-me, generosamente, a escrever sobre a minha experiência de fotografar. Essa é uma expressão que me deixa confortável porque não sugere, necessariamente, especiais aptidões ou habilitações. Há entre os seguidores da Comunidade fotógrafos de facto e olhares muito mais talentosos, por isso combinei (com ele e comigo) que o faria apenas se organizasse algum raciocínio significativo. O desafio foi o gatilho para ligar uma série de pontos sobre a relevância de documentar regiões despovoadas, trazer diversidade aos espaços mediáticos com lugares e caras não tão habituais ou prováveis, enfim, sobre o que escolhemos guardar e transmitir enquanto vamos descobrindo o que andamos aqui a fazer.
Em 2020, decidi comprar a minha primeira câmara fotográfica e, em setembro, surgiu a oportunidade de fotografar a vindima de pessoas amigas, ao lado da Mêda. Era um dos meses mais atarefados no meu trabalho da altura, em Lisboa, e reparo que se não fosse a pandemia nada disto se teria proporcionado. Entre tantos desastres, a pandemia permitiu a muitos voltar a passar mais tempo em casa.
“O irresistível apelo estético pode tornar as pessoas que estão à tua frente em figurantes do cenário que estás a idealizar para mostrar aos outros, quando na verdade é com elas que deves ter o contrato mais valioso.”
Não só, mas também por já ter estado do lado do trabalho braçal (pisa de uva no lagar, algures na campanha de 2015), a posição de respeito e a vontade de homenagear os trabalhadores já estavam bem presentes. Mas desconfio que os retratados nesses disparos não tenham gostado muito de se ver. Fiz as pessoas mais velhas do que eram, salientei as rugas, puxei pelos contrastes, acho até que olhei, sobretudo, para as expressões cabisbaixas e cansadas. Cheguei com um objetivo tão vincado de mostrar a dureza da vinha e o sacrifício de quem a trabalha que, sem o perceber logo, acabei por ficcionar.
É uma tentação que tive sempre o cuidado de evitar, avisado por algumas leituras antropológicas, mas que é muito mais subtil do que esperamos: o irresistível apelo estético pode tornar as pessoas que estão à tua frente em figurantes do cenário que estás a idealizar para mostrar aos outros, quando na verdade é com elas que deves ter o contrato mais valioso. Por outro lado, tive sempre a consciência de deixar de lado o storytelling individual — estou bem ciente da eficácia do recurso, mas nunca pretendi explorar a privacidade destas pessoas à caça de oferecer mais emoção às imagens. Não ia ter tempo para um contacto mais longo e desenvolvido, e sou crítico quando detecto quem força mais profundidade do que aquela que existe na verdade. Pode ser que a oportunidade apareça no futuro.
Realmente, não me surgiram muitas ocasiões para conversar nestes momentos, e acho que não foi por timidez. Sendo um elemento estranho ali, quis sempre que a minha presença fosse discreta, para não atrapalhar, e sobretudo porque não tenho o direito de distrair do essencial (colher uvas). Foi com essa postura que também não ganhei o hábito de pedir poses, acabando, nos anos seguintes, por aproveitar momentos de pausa e umas tiradas mais divertidas para trocar umas simpatias e captar uns sorrisos espontâneos.
Em termos técnicos, as condições não são particularmente favoráveis à fotografia: as pessoas mexem-se rápido, passam muito tempo curvadas e tapadas pelas folhas da videira, os chapéus escondem as caras, a paisagem é muito ruidosa (com muita informação e muitos elementos para a fotografia, leia-se) e tanto a câmara como as mãos não são profissionais.
“A forma como olho o outro, o significado que as imagens têm, fará mais diferença que os ângulos, a nitidez ou a cor.”
A curiosidade de explorar novos botões e possibilidades da máquina tem-se desenvolvido ao mesmo ritmo que um processo de auto-descoberta, em que vou atribuindo forma concreta à minha relação com o cenário rural, as minhas raízes, que teve manifestações difusas ao longo dos anos (prestes a completar 10 anos a viver em Lisboa…), outras vezes evidente para mim nas palavras dos outros, como por exemplo na devoção que dediquei à obra dos Diabo na Cruz. Agora, expressa-se assim e dá-me muito gozo. Conformo-me facilmente com as limitações técnicas (a experiência também é como uma árvore a crescer) enquanto reforço a ideia de que o que escolho captar, a forma como olho o outro, o significado que as imagens têm, fará mais diferença que os ângulos, a nitidez ou a cor.
Em 2021, redefini a minha prioridade. Viagem de fim de semana para a Mêda, ponto de encontro às 7h30, um à-vontade diferente porque havia algumas pessoas do ano anterior. Queria transmitir cores mais naturais (parece que o simples é o mais difícil, não é?) e criar retratos que fossem motivo de orgulho para os fotografados.
Pelo interesse que estas imagens foram gerando, comecei a refletir sobre a quantidade de lugares, profissões e manifestações culturais (em particular da Beira Alta, que conheço melhor) que precisam do nosso contributo para não se tornarem exóticas, distantes, invisíveis. Abrimos o Instagram e até temos os miradouros sobre o rio Douro bem representados, mas não há assim tantos materiais hi-fi sobre procissões em que as pessoas caminham descalças, de pastoreio, de encontros populares fora das grandes romarias. Compreendo que quem vive diariamente esses cenários e os tem como normais na sua vida não faça questão nem sinta a urgência de documentar (não fotografas o teu caminho para o trabalho todos os dias), mas é muito importante a visita de olhares forasteiros que se deslumbrem com a novidade e com as imagens para si pitorescas.
Interessa-me esse confronto, essa surpresa de cruzar círculos. Da mesma forma que notei sempre alguma maravilha quando os meus amigos visitaram a Mêda pela primeira vez, também achei boa ideia a oportunidade de aparecerem, desta vez, estas caras na Comunidade Cultura e Arte. Da mesma forma que fico feliz nos tempos de antena dos filmes de Miguel Gomes ou Jorge Pelicano, quando o Diário das Beiras de Anabela Moreira e do João Canijo passou no Cinema Ideal, quando encontro trabalhos de outras pessoas de Bragança a Faro que, lentamente, desafiam a hegemonia das trinta e sete mil e novecentas perspetivas diárias de sítios como a fachada do MAAT (contra mim falo, é bonita).
A diversidade cultural, gastronómica e social do país até está bem estabelecida (embora note também da parte de organismos públicos, por exemplo o Turismo de Portugal, uma grande assimetria) — sabemos de onde vêm os melhores enchidos, quem compete pelo melhor pão, onde encontramos arte xávega, os locais das pinturas rupestres — a questão é que muitos desses territórios, e mesmo dessas populações, não estão presentes no nosso dia-a-dia, nos ecrãs que consumimos, consequência do grande desequilíbrio territorial. A sua aparição está, antes, reservada para momentos excepcionais. Acrescentar diversidade e dar palco aos dias normais nesses lugares é, a meu ver, fazer um bocadinho mais pela coesão territorial. Sei perfeitamente que estas pessoas já perderam a sua voz eleitoral (os deputados eleitos por certos círculos raramente baralham as contas parlamentares), mas podemos tentar outros caminhos.
Há poucas semanas, colheita de 2022. Já estava ligeiramente mais descansado sobre as melhores oportunidades de fotografar, mesmo que desta vez o tempo nublado tivesse dado lugar ao sol abrasador (que não ajuda). Em boa hora decidi experimentar também uma câmara de rolo. Encontrei a textura, as cores, o resultado final que há muito tempo magicava.
Quando as fotografias são publicadas na página da produtora, o que vou sentindo é que as pessoas gostam de se ver, sentem-se estimadas, surge-lhes aquela vaidade boa. Nem sempre são elas as personagens principais quando se fala dos vinhos do Douro, mas desta vez foram. Há uns dias uma senhora pediu-me amizade no Facebook e enviou uma mensagem a pedir para lhe enviar as fotografias que lhe tinha tirado. É um pormenor simples mas teve significado para mim e, sinceramente, acabou por desbloquear este artigo que andava a adiar.
Sem grandes ilusões ou compromissos, mas com paciência, espero vir a ter tempo e oportunidades de fotografar mais e melhor, mais pessoas e mais cenários não tão habituais ou prováveis.