Vira o disco e toca o mesmo? Das sucessivas alterações ao arrendamento (e agora?)

por Comunidade Cultura e Arte,    13 Fevereiro, 2019
Vira o disco e toca o mesmo? Das sucessivas alterações ao arrendamento (e agora?)
Fotografia + Ilustração de James Casebere
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O dia 13 de Fevereiro de 2019 para muitos, famigerados pelo sentimento da paixão, é a ansiedade de agradar o próximo ou, ao invés, a antevisão do nervosismo de um dos dias mais consumistas do ano que chega amanhã. Estamos em crer que fomos quase que afetados por uma seta, até mesmo de um cupido, ao nível da matéria do arrendamento.

Entram hoje, neste dia 13 de Fevereiro de 2019, em vigor duas alterações a que não podemos ficar indiferentes em matéria de arrendamento ou, se o quiserem, locação de bens imóveis, aplicando-se também aos subcontratos que dele derivem.

Não podemos, naturalmente, num artigo breve e expositivo falar de todas as alterações trazidas pelas novas leis. No entanto vamos abordar aquelas que, para nós, se apresentam como absolutamente essenciais de compreensão. Vamos partir do ponto assente que a matéria do arrendamento tem, necessariamente, um interesse social. Basta fazer um Google it nas notícias com a tag arrendamento e vamos perceber que as vozes se têm levantado: urge a tutela do arrendatário.

Distanciamento lógico tem que ser feito deste logo porquanto não se pode confundir a tutela do arrendatário com os benefícios dados, eventualmente, a arrendatários incumpridores em detrimento dos senhorios. Não é nada ténue, nem fácil, nem unânime este caminho.

Relembremos apenas as questões que se têm levantado: as especulações dos valores das rendas, os bloqueios aos arrendamentos para a instalação de alojamentos locais.

Comecemos. O assédio termo conhecido por todos mas que ainda não estava aplicado em matéria de arrendamento surge, agora, criado por lei. A Lei n.º 12/2019, publicada no Diário da República n.º 30/2019, Série I de 2019-02-12, vem proibir e punir aquilo a que agora se chama “assédio no arrendamento”. Avança-se, nesta lei, com o conceito daquilo que é entendido como assédio no arrendamento e, ademais, promove-se a possibilidade do arrendatário intimar o senhorio a determinadas providências.

O assédio no arrendamento conforme artigo 13.º-A é entendido como “qualquer comportamento ilegítimo do senhorio, de quem o represente ou de terceiro interessado na aquisição ou na comercialização do locado, que, com o objetivo de provocar a desocupação do mesmo, perturbe, constranja ou afete a dignidade do arrendatário, subarrendatário ou das pessoas que com estes residam legitimamente no locado, os sujeite a um ambiente intimidativo, hostil, degradante, perigoso, humilhante, desestabilizador ou ofensivo, ou impeça ou prejudique gravemente o acesso e a fruição do locado”.

Esta previsão visa, assim, uma tutela mais premente do arrendatário enquanto sujeito havido como parte mais fraca da relação contratual: muitas vezes manipulado em face das atrações do mercado e no maior aumento da perceção de frutos pelos proprietários.

Além desta criação e consagração do assédio no arrendamento que dúvidas nos levantam quanto à sua efetiva aplicabilidade prática (porque a existência das práticas implica a consciência e previsão efetiva de quem deverá agir perante elas e em que moldes) é consagrada a intimação para tomada de pedidas a ser efetuada pelos arrendatários relativamente aos senhorios. Esta intimação não substitui qualquer responsabilidade de outra índole sendo que, com a previsão efetiva, o arrendatário pode junto do senhorio, diretamente, ver os seus bens tutelados no sentido de impor ao senhorio a ação de promover, por exemplo, à cessação da produção de ruído que afeta o arrendatário (ou quem resida legitimamente no imóvel), corrija as deficiências do locado ou todas aquelas deficiências que sejam configuráveis um risco grave para a saúde ou segurança de pessoas e bens e, ainda, corrijam situações que vão impedindo ou limitando o acesso e a fruição do imóvel.

Repare-se que esta exposição, prevista no artigo 13.º-B, aditado com esta lei, tem que se realizada com os formalismos previstos no artigo 9.º do NRAU e, ainda, conter uma efetiva exposição factual. O artigo aditado consagra uma série de procedimentos, desde logo o arrendatário ter a faculdade, independemente da intimação, de pedir uma vistoria à Câmara Municipal com um prazo legal para a atuação desta estipulado.

Além disso, o senhorio que receba essa intimação deverá responder num prazo de 30 dias, demonstrando o cumprimento da intimação, a adoção de medidas ou, noutros casos, justificar a sua não adoção.  Sendo certo que, caso o senhorio não responda ao arrendatário – podendo ser alvo de responsabilidade civil ou criminal – a nova lei consagra meios judiciais ou extrajudiciais novos para que o arrendatário possa reagir.

É agora facultada a possibilidade de ser requerida uma injunção contra o senhorio, por parte do arrendatário, com vista à correção da situação exposta na intimação e, ainda, poderá ser exigida ao senhorio “o pagamento de sanção pecuniária no valor de 20 (euro) por cada dia a partir do final do prazo previsto no número anterior, até que o senhorio lhe demonstre o cumprimento da intimação nos termos do artigo 9.º ou, em caso de incumprimento, até que seja decretada a injunção prevista na alínea anterior”, conforme o prevê o n.º 5 do referido artigo.

Um eco de proteção aos arrendatários com idade igual ou superior a 65 anos ou com um grau comprovado de deficiência igual ou superior a 60% que podem exigir essa sanção pecuniária elevada em 50% ou seja 30 (trinta) euros por cada dia. Naturalmente que nos referimos a arrendamentos habitacionais caso contrário abrir-se-ia aqui uma caixinha de surpresas para os arrendamentos urbanos…

Destaque-se apenas que pese embora a proteção (brutal) dada aos arrendatários estes também têm prazos para requerer a intimação sob pena dos seus direitos caducarem e, com eles, a legitimidade do pedido de sanção pecuniária. Diz-nos o n.º7 do referido artigo que “[a] intimação prevista nos n.ºs 2 e 3 caduca, extinguindo-se a respetiva sanção pecuniária, se a injunção prevista na alínea a) do número anterior não for requerida no prazo de 30 dias a contar do termo do prazo previsto no n.º 4, ou se for indeferida”.

Por isso, a janela à intimação está aberta… Mas com que limites?

Em segundo lugar, a Lei n.º 13/2019, publicada no Diário da República n.º 30/2019, Série I de 2019-02-12 vem criar medidas destinadas a corrigir situações de desequilíbrio entre arrendatários e senhorios, a reforçar a segurança e a estabilidade do arrendamento urbano e a proteger arrendatários em situação de especial fragilidade.

As grandes e significativas alterações para nós, que não poderemos, naturalmente, focar-nos em todas, traduzem-se em proteções, aparentes, do arrendatário que, vistas as coisas na prática, poderão suscitar outras questões.

Repare-se que o fundamento e a intenção desta lei é a proteção do arrendatário urbano que estejam em especial fragilidade e corrigir situações de desequilíbrio.

Até agora, quando o arrendatário entrava em mora, o senhorio tinha a opção de optar pela manutenção do contrato acrescida do pagamento das rendas em atraso e de uma indemnização de 50%. Ou, então, poderia optar pela resolução. Como o pagamento das rendas em atraso e a indemnização de 50% com vista à purgação da mora eram atrativas para a manutenção do arrendamento os senhorios, normalmente, optavam por pugnar pela sua manutenção num passo prévio. Nunca poderiam cumular, ou seja, pedir a indemnização e a resolução.

O artigo 1041.º do Código Civil fixa, por exemplo, a indemnização a liquidar pelo arrendatário ao senhorio em 20% em caso de mora. Ou seja, temos um redução de 30% do valor a liquidar em caso de indemnização para a manutenção do contrato. Não estaremos, de certa maneira, a beneficiar o arrendatário incumpridor? Ou, por outro lado, não estaremos a abrir as portas a que o senhorio decida, assim, resolver os contratos (sem prejuízo das possibilidades de purgação da mora previstas por lei) por não ver nenhuma vantagem real e efetiva na manutenção do arrendamento?

Uma questão que nos assusta especialmente é as alterações que envolvem os fiadores. É claro que a fiança é uma garantia pessoal que, na génese, é criada para a garantia efetiva de determinada pessoa em determinado momento contratual (não nos podemos esquecer das célebres discussões sobre se a fiança se “renova” com os contratos mas aí temos pano para mangas).

Agora, com esta nova lei, estipula-se um prazo de interpelações dos fiadores dos arrendatários e estabelece-se um regime de proteção destes: violado esse prazo, a fiança deixa de ter então o seu efeito? Não será um extremismo?

O fiador é, de facto, fortemente protegido. Fixa-se o momento da exigibilidade do crédito junto do fiador, fazendo-o ficar dependente da comunicação em prazo legal. Volta-se à questão: se a fiança está a ser solicitada é porque estamos num cenário de incumprimento. Quem beneficia disto é, de facto, o fiador e o arrendatário. Mas, por outro lado, impomos a responsabilidade no senhorio de respeitar prazos. Mas não estaremos a criar aqui um desequilíbrio?

Drástica é a alteração que é dada ao caráter formal do arrendamento. O artigo 1069.º do Código Civil é alterado no sentido de que ainda que não exista um contrato escrito é possível a prova do arrendamento mediante a demonstração “[d]a utilização do locado pelo arrendatário sem oposição do senhorio e o pagamento mensal da respetiva renda por um período de seis meses”. Acompanhando a evolução legislativa do artigo 1069.º do Código Civil estamos em crer que este artigo sofreu um verdadeiro retrocesso abrindo aqui uma janela para as utilizações e ocupações sem título virem agora ser justificadas. E essas, entendeu-o o legislador, não poderiam ser verdadeiros e efetivos arrendamentos o que apenas seria garantido com um caráter formal. Agora, as coisas mudam e esta alteração, na nossa modesta opinião, é criadora de um sério e efetivo desequilíbrio e, dite-se mesmo, de certa injustiça social.

Outras alterações foram originadas com esta lei, altera-se a possibilidade de resolução prevista no n.º 6 do 1084.º do CC; estipula-se uma impossibilidade de oposição à renovação nos primeiros cinco anos nos termos dos contratos de arrendamento regulados pelo artigo 1110.º do CC, ou seja, nos contratos de arrendamento não habitacionais; cria-se a previsão da não discriminação no arrendamento, com o aditar do artigo 1110.º-A do CC; cria-se um novo meio processual, a dita, a Injunção em matéria de arrendamento, entre outras alterações.

Se na prática a matéria do arrendamento, pela existência de regimes transitórios, já assombra a sua interpretação, tememos que com esta legislação aconteça o que vem a acontecer normalmente: uma especulação e reações não justificadas, esclarecidas ou ponderadas.

E estas alterações, afinal de contas, a quê que se aplicam?

O artigo 14.º da dita Lei, sob a epígrafe disposições transitórias, indica que:

“1 – O disposto no n.º 7 do artigo 1041.º do Código Civil, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47344/66, de 25 de novembro, com a redação dada pela presente lei, é aplicável a dívidas constituídas anteriormente à data de entrada em vigor da presente lei.

2 – O disposto no n.º 2 do artigo 1069.º do Código Civil, com as alterações introduzidas pela presente lei, aplica-se igualmente a arrendamentos existentes à data de entrada em vigor da mesma.

3 – Nos contratos de arrendamento habitacionais de duração limitada previstos no n.º 1 do artigo 26.º do NRAU, aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, cujo arrendatário, à data de entrada em vigor da presente lei, resida há mais de 20 anos no locado e tenha idade igual ou superior a 65 anos ou grau comprovado de deficiência igual ou superior a 60 %, o senhorio apenas pode opor-se à renovação ou proceder à denúncia do contrato com o fundamento previsto na alínea b) do artigo 1101.º do Código Civil, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47344/66, de 25 de novembro, com a redação dada pela presente lei, havendo lugar à atualização ordinária da renda, nos termos gerais.

4 – A redação conferida pela presente lei ao n.º 10 do artigo 36.º do NRAU, só produz efeitos no dia seguinte à data da cessação da vigência da Lei n.º 30/2018, de 16 de julho, que estabelece o regime extraordinário e transitório para proteção de pessoas idosas ou com deficiência que sejam arrendatárias e residam no mesmo locado há mais de 15 anos.

5 – As comunicações do senhorio de oposição à renovação do contrato de arrendamento enviadas durante a vigência da Lei n.º 30/2018, de 14 de junho, aos arrendatários por ela abrangidos, que não tenham como fundamento o previsto na alínea a) do artigo 1101.º do Código Civil, com a redação dada pela presente lei, não produzem quaisquer efeitos”.

Ah. Gira o Disco e Toca o mesmo, diz-se. Mas aqui não toca o mesmo! Com esta alteração legislativa o Código Civil, o NRAU e os regimes transitórios ganham uma nova redação. Há oposições à renovação que são bloqueadas quando ocorridas na aplicação do regime extraordinário e transitório para a proteção de idosos (idade igual ou superior a 65 anos) ou com deficiência que sejam arrendatárias e residam no locado há 15 anos.

E estes bloqueios, limitações, alterações nas denúncias e oposições à renovação não deve ser observado sem um estudo coeso, esclarecido e claro.

É importante ler e compreender o que foi alterado e o que a partir de hoje vamos ter: muitos dos senhorios que tentaram mudar o disco, afinal, não vão ter nova música.

As alterações legislativas são mesmo isto. Mas o cidadão deve conhecer aquilo com que terá de lidar (até à próxima alteração) e alguém há-de sair, ainda que se custe reconhecer, sempre ligeiramente desprotegido. Já se dizia: não se pode agradar a gregos e a troianos.

Para uma leitura mais esclarecida e total de todas as alterações: aqui e aqui.

Artigo escrito pela Advogada Alexandra Cruz e Advogada Isa Meireles
Alexandra Cruz é Advogada, Assistente Convidada na Escola de Direito da Universidade do Minho, Investigadora no JUSGOV, Mestre em Direito e Doutoranda em Direito Escola de Direito da Universidade do Minho.

Isa Meireles é Advogada, Assistente Convidada na Escola de Direito da Universidade do Minho, Investigadora, Mestre em Direito e está em aprovação ao Doutoramento em Direito Escola de Direito da Universidade do Minho.
Ambas são apaixonadas pela vida, pelas coisas, pelas causas e pelas pessoas e esta paixão, que brilha nos olhos adultos, é guiada pelos trilhos do Direito.

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