Vodafone Paredes de Coura: Um rumo à história do Couraíso
Artigo escrito por Ana Monteiro Fernandes e Linda Formiga.
Corria o ano de 1993 e uma localidade desconhecida no norte de Portugal estava prestes a ganhar notoriedade, e perder parte do seu sossego, no bom sentido. Segundo João Carvalho, um dos fundadores e o actual director do Vodafone Paredes de Coura, “é quase um sonho fazer um festival num meio pequeno [Paredes de Coura], que hoje é sinónimo de música. Mas, quando começámos, era só uma terra perdida no interior do Alto Minho. Tínhamos de dizer que ficava a 25 km de Valença, no distrito de Viana do Castelo”, confessou-o em 2020 em entrevista ao Espalha Factos. Para sabermos o resto da história, é só juntar as peças: uma localidade pequena, Verão, jovens amantes de música a quererem fazer coisas, vontade de diversão, e assim nasceu o festival que se tornou uma das mecas para festivaleiros à procura de boas descobertas musicais.
Neste ano de entrada em vigor do Tratado de Maastricht, a Expo 98 começava a ser construída, Mário Soares era Presidente da República e Cavaco Silva usufruía de uma maioria absoluta enquanto primeiro-ministro. As bandas internacionais não tinham ainda posto Portugal no mapa das suas digressões, mas nem por isso um considerável grupo de jovens amigos, na casa dos 20 anos, à mesa do actual Café Courense – depois de uma noite de fados de Coimbra – decide (e porque não?) fazer um festival, possivelmente movidos pelos lançamentos discográficos do ano de 1993. Neste ano, os Suede lançaram o seu álbum de estreia, homónimo, assim como os Tindersticks. Os Yo La Tengo lançavam Painful, os The Flaming Lips apresentavam Transmissions From the Satellite Heart e as Breeders Last Splash, os Slowdive lançaram Souvlaki e PJ Harvey apresentava-nos o seu cru e intenso Rid of Me. Mal sabia o grupo de amigos, que daquela amena cavaqueira, haveria de nascer um festival onde todos estas bandas estariam presentes, anos mais tarde.
“A primeira edição não passou de uma noite de concertos organizada por cerca de 20 amigos. Foi tudo muito amador, mas feito com amor”, lê-se num livro comemorativo que celebrou os 22 anos do festival. E na entrevista ao Espalha Factos, João Carvalho complementa: “O festival nasce em 1993 sem objetivos mercantilistas, com o objetivo de promover Paredes de Coura e ser um pretexto para um grupo de amigos se juntar. Portanto, essa forma tão natural e bonita da génese do festival, embora hoje tenha também objetivos comerciais, nunca se perdeu. Além de sermos promotores, adoramos música. Hoje, gosto mais de música do que gostava em 93, e nessa altura já gostava muito.”
Desconstruíram-se também preconceitos locais, uma vez que João Carvalho, na mesma entrevista, relembra que, “quando fizemos as primeiras edições, havia um ‘burburinho’ que iria trazer pessoas que não interessam, como drogas e skinheads. Chegaram a ir a casa dos meus pais dizer ‘vêm aí não sei quantas camionetas com skinheads’, portanto havia ali um certo pânico. A primeira e segunda edição foram muito curiosas, porque as pessoas tinham receio, mas foram na mesma. Foi um choque, mas facilmente perceberam que o festival só traria coisas boas.”
“Paredes de Coura, Praia Fluvial (Taboão), sexta-feira, 20 de Agosto, Festival de Música Moderna Portuguesa”. Era assim que versava o primeiro cartaz, tendo como bandas, todas elas nacionais, Ecos da Cave, Gangrena, Cosmic City Blues, Purple Lips e Boucabaca: esta última, era a banda do actual presidente da Câmara de Paredes de Coura, Vítor Pereira, um dos fundadores do festival, também.
“Fizemos o primeiro festival de Paredes de Coura 9 dias depois de termos a ideia”, relembrou João Barreiro, um dos fundadores e, actualmente, director do festival Primavera Sound Porto, ao podcast Posto Emissor, da revista Blitz. Uma ideia que nasceu rápido e rapidamente se concretizou. Desafiaram o presidente da Câmara Municipal de então e conseguiram convencer a autarquia a apoiar com 160 contos, 800 euros. Elaboraram um plano de forma célere, e mudaram a história da localidade. Formaram, então, uma associação e, depois, a empresa Ritmos, actualmente com os mesmos sócios. A primeira edição foi gratuita e assim se manteve até 1996, o ano em que, pela primeira vez, o festival recebeu bandas internacionais, porque se temia que a cobrança de bilhetes pudesse afastar o público. Três anos depois, o valor a ser cobrado por três dias de festival seria mil escudos, o equivalente a cinco euros. O dinheiro não seria muito, o desenrasque seria a palavra de ordem, e como o próprio João Carvalho recordaria à imprensa mais tarde, seriam os próprios a ajudar na montagem dos palcos, até a fazer as camas dos artistas e a colar os cartazes. Pelas próprias palavras de João Carvalho à imprensa, “até a cola era improvisada numa mistura de água e farinha“. O ano de 1996 traria ainda mais mudanças, além da cobrança dos bilhetes e das primeiras bandas internacionais do festival. Seria, também, a primeira vez que o certame adoptaria o nome da localidade, Festival Paredes de Coura, e deixaria de ser Festival de Música Moderna Portuguesa, além de ser o primeiro ano com um patrocinador oficial, a Cerveja Imperial.
Do grupo de amigos dos fundadores, fez parte Tiago Brandão Rodrigues, investigador na área da oncologia e ex-ministro da Educação, natural da vila. Segundo o próprio revelou à Notícias Magazine: “Fico embevecido de orgulho quando penso no que o meu grupo de amigos de criança conseguiu fazer com o festival. Mais do que fazer, manter. E sempre de forma simples e genuína”. A título de curiosidade, foi mesmo no recinto do festival que Tiago Brandão Rodrigues conheceu António Costa, em 2014, como confirmou ao mesmo órgão de comunicação: “Não é mito, é verdade. Foi lá que falei com ele pela primeira vez”. Complementou ainda: “Fiquei surpreendido, porque ele já conhecia o meu trabalho científico. Tivemos uma conversa curta, que depois instigou conversas maiores”.
A convicção, segundo João Carvalho, de que o Festival de Paredes de Coura entraria para os anais da História dos festivais em Portugal deu-se em 1999 com a primeira grande enchente, os primeiros lucros, e com Paredes de Coura a tornar-se paragem obrigatória para os amantes da música. No cartaz figuravam dEUS, Suede, Guano Apes e Mogwai, entre muitos outros.
O caminho fez-se caminhando. Se 1999 havia sido o ponto de viragem, a edição do ano 2000 parecia pôr tudo em risco novamente, com os prejuízos a voltarem a estar em cima da mesa. Curiosamente, no cartaz figuravam os imberbes Coldplay, um mês depois de lançarem o seu álbum de estreia Parachutes. Quase passaram despercebidos, a experiência não seria muita, o nervosismo era considerável (pode ouvir-se aqui), mas a passagem dos Coldplay por Paredes de Coura demonstra que o festival sempre funcionou como a incubadora das futuras grandes bandas.
Os momentos míticos são abundantes nestas 30 edições de Paredes de Coura. Em 2003, Karen O esmagava um ananás em cima da cabeça, na estreia – e, mais uma vez, com um scouting perspicaz – dos Yeah Yeah Yeahs em Portugal. Na mesma noite, PJ Harvey tocava em trio pela primeira vez em anos, numa minidigressão com os seus companheiros de sempre, Rob Ellis e Mick Harvey. Na mesma edição de 2003, os Queens of the Stone Age subiram ao palco com Mark Lanegan, na única vez que tal aconteceu em Portugal.
2004 seria uma verdadeira prova de fogo para o festival. “Antes de o festival começar já chovia torrencialmente, como raramente chove mesmo durante o próprio inverno”, explicou àquele órgão de comunicação online, e haveria o risco do certame ficar por ali. O palco em que actuariam os LCD Soundsystem, na altura uns completos desconhecidos que nem constavam no cartaz, ficou destruído e a banda acabaria, mesmo, por fazer o seu concerto no palco principal. Apesar das advertências de que seria melhor cancelar a edição devido ao perigo de curto-circuitos e falta de condições, a organização acabou por dar a volta, resolver a situação e não deixar mal o seu público. Pelo que João Carvalho revelou ao Espalha Factos: “Fomos buscar camiões para tirar a lama do campismo e altifalantes para dizer às pessoas que podiam ir para determinadas garagens.” Foram quatro dias de chuva incessante e a capa do jornal do Público dizia mesmo que já não chovia daquela forma há 99 anos – uma capa e título que ficaram na lembrança de João Carvalho.
Não obstante a edição de 2005 ter estado em risco, a Rolling Stone Magazine considerou Paredes de Coura como um dos cinco melhores festivais de música da Europa. No cartaz, figuravam Foo Fighters, Kaiser Chiefs (com direito a pé torcido), Pixies, Death From Above 1979, Queens of the Stone Age, Nick Cave & the Bad Seeds (já sem Blixa), Killing Joke e os não-menos-míticos The Roots. Sem estarem destacados e de forma discreta, surgiam também, nem mais nem menos, do que The National e os Arcade Fire, que deram um concerto que ficou na história do festival e na memória de quem assistiu. A 23 de Agosto de 2005, já após a edição do festival, Sérgio Gomes da Costa escrevia no então jornal Blitz: “Ninguém esperava aquele recreio, aquelas valsas picarescas, aquela embriaguez iluminada. Foi um corrupio de gente, de instrumentos, de coreografias. A insanidade andou por lá, a clarividência espreitou, o sol pôs-se com pena de não ficar até ao fim – eram só sete, mas decretaram a noite. Os Arcade Fire nunca mais vão ser um segredo“.
O Festival Paredes de Coura foi sempre ganhando pé, ganhando estrutura, ganhando nome. Em 2006 víamos Morrissey, os The Cramps e o super colectivo Broken Social Scene e a curadoria do festival ganhou posição de destaque. Daí em diante, as bandas que subiriam aos palcos do festival seriam as que os seus organizadores ouviam no seu dia-a-dia. Em 2007, os Sonic Youth eram a banda esperada e os Linda Martini cumpriam o sonho de saírem da qualidade de espectadores para abrirem o palco principal.
A edição de 2008 ficou na História porque trouxe, pela primeira e única vez, os Sex Pistols a Portugal. Reza a lenda que não terá sido o melhor dia da banda, mas nas margens do rio Coura ouviu-se e entoou-se God Save the Queen com os corações do punk ao alto.
Os momentos míticos e as bandas descobertas na praia fluvial do Taboão são às dezenas. Os regressos também. 2012 marcou o regresso dos Ornatos Violeta aos palcos, em 2013 os míticos Echo and the Bunnymen cruzavam-se com os Justice ou os The Knife. Em 2015, Charles Bradley, esse génio tardiamente descoberto, impressiona pela sua enorme sensibilidade e visceralidade e em 2016 os LCD Soundsystem regressam finalmente a Coura, para um concerto que fez esquecer a chuva de 2004. 2018 coloca os Arcade Fire agora como cabeças de cartaz, a anos-luz daquele dia de 2005 em que abriram o palco, e em 2019 foi a vez de os The National fazerem o mesmo percurso e encabeçarem, finalmente, o primeiro dia do festival.
2019 foi, sem sabermos, um ano de despedida. Para a história ficou, além dos The National, New Order, Khruangbin (outra estreia em solo português), Car Seat Headrest ou Father John Misty, Brett Anderson que terminou magistralmente o concerto de Suede no meio do público e Patti Smith and Her Band emocionou e pôs-nos a todos de punho no ar a entoar People Have the Power, num tom quase profético para os anos que se seguiriam e em que o mundo parece ter dado várias cambalhotas, não só devido à pandemia, mas também ao nível político.
Os anos seguintes foram, como sabemos, de interregno e de incerteza. Muitos esforços houve para que fosse reposta alguma normalidade num mundo em suspenso e, num misto de saudades e de vontade de mudar o mundo, muitos foram os que se deslocaram ao norte do país para verem um recinto vazio, mas à espera de voltar a ouvir música. Em 2021, o cenário repetiu-se e o regresso dá-se, triunfantemente, em 2022, com Pixies, IDLES ou BADBADNOTGOOD.
A edição dos 30 anos do Vodafone Paredes de Coura quis-se especial e, como é seu apanágio, foi. Com a presença de Lorde, Little Simz e Wilco, entre muitos outros, assistimos a uma edição que reunia históricos e não-tão-conhecidos, consolidando a vertente de descoberta de novas bandas. Ir ao Vodafone Paredes de Coura é um exercício de descoberta, cada vez mais acentuado pelo facto de o festival se fazer de forma independente numa pequena localidade a norte do país, numa altura em que as bandas mais comerciais estão algures no norte da Europa. Um festival que se reinventa, que alarga os seus dias para acomodar programação dedicada à música portuguesa (e de entrada livre). Que intersecciona estilos e expressões artísticas, que faz com que todos os anos milhares se desloquem ao “Couraíso”, onde a natureza e a música entram em sintonia. O Vodafone Paredes de Coura é, além de tudo, um festival de resiliência para quem o faz, um festival livre de imposições algorítmicas para quem o frequenta.
Nota: Reunimos muitos bons momentos, mas claro que cada pessoa terá os seus preferidos e terá a sua própria história no Vodafone Paredes de Coura.