“Watchmen”, um retrato fiel da BD e dos dias de hoje

por João Fernandes,    8 Janeiro, 2020
“Watchmen”, um retrato fiel da BD e dos dias de hoje
Watchmen
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“Nada realmente acaba…” e com este pensamento a DC Comics, HBO e Warner Bros não conseguiram deixar a propriedade de Watchmen em paz. Felizmente, a aposta em Damon Lindelof e a sua equipa para conduzirem esta continuação foi certeira. Watchmen é uma série feita por fãs e para fãs, possuindo imensas qualidades, sobressaindo a criatividade e a inteligência do argumento como os grandes trunfos desta série a par de um storytelling cativante.

A tarefa era complicada. Fazer uma continuação da história e ainda soar a algo que poderia ter sido escrito por Alan Moore (escritor do romance gráfico) não era tarefa pêra doce. Para contar a sua versão, Damon Lindelof, realiza um exercício em que se põe na pele do autor quando escreveu as doze edições da banda desenhada. Moore imaginou Watchmen dentro de um clima político sombrio dos anos 80, quando a Guerra Fria estava provavelmente mais “quente” que nunca, e quando um apocalipse nuclear parecia algo realmente possível de acontecer. Moore procurou elucidar, por meio da ficção, tanto a racionalidade como a irracionalidade dessa disputa política.

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Para Lindelof, a guerra racial é um tema de importância equivalente a uma guerra nuclear nos dias de hoje, principalmente na América. Dessa forma, a série decorre no ano de 2019 em Tulsa, Oklahoma. Uma cidade onde ocorreu um dos atos mais chocantes de violência racial nos Estados Unidos, o Massacre de Black Wall Street de 1921, onde o Klu Klux Klan e outros cidadãos atacaram e mataram centenas de residentes negros. Esta atrocidade é uma fonte de inspiração para Watchmen refletir sobre o presente.

Neste presente, durante a série, vemos que pouco mudou em relação a esta realidade. A tensão e a fricção mantêm-se e a repetição de um ato destes parece inevitável. Observamos o crescimento de um grupo similar aos KKK de supremacia racial, designado por Sétima Kavalaria e que usa máscaras de Rorschach (herói da BD original) em vez de robes brancos. Para os combater, os polícias usam máscaras (para proteger as suas identidades) e os superiores têm até mesmo identidades de super-heróis.

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O argumento levanta questões sobre o crescimento de nacionalismo, a brutalidade policial, a herança racial entre outras. Neste mundo existe um imposto chamado “Redfordation”, uma medida proposta por Robert Redford (Presidente dos Estados Unidos da América nesta realidade), que pretende indemnizar as vítimas de ataques raciais. Apesar de isto ser uma medida com boas intenções, será que é justo uma pessoa pagar pelos pecados dos seus antepassados? Será que esta medida, indiretamente, não contribui para uma divisão cultural resultando em mais pessoas com uma ideologia baseada no ódio? Watchmen demonstra que não existe uma solução fácil para resolver estes problemas.

Acompanhamos o desenrolar destes conflitos através de várias personagens tão complexas e simbólicas quanto as do original, sendo Angela Abar de Regina King (vencedora do Óscar por If Beale Street Could Talk) a personagem central do enredo. Tal como a novela gráfica, a história desenvolve-se devido a uma misteriosa morte de uma pessoa importante. Na série essa pessoa é Judd Crawford (Don Johnson), um chefe de polícia e uma figura paterna de Angela, uma detective conhecida por Sister Night que ao investigar a morte de Judd acaba por descobrir uma conspiração de proporções catastróficas. Apesar de uma ligação forte e favorável ao enredo, a personagem eleva a série graças a uma interpretação confiante de Regina King que consegue mostrar, por trás da máscara, um olhar raivoso e comovente.

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O mesmo se pode dizer sobre a qualidade de performance de Tim Blake Nelson como Looking Glass. Esta personagem é uma versão dos tempos modernos de Rorschach, ou um espelho do mesmo. As parecenças são muitas desde a máscara que usa, e que reflecte as emoções, ou a forma como esconde as suas inseguranças como depressão existencial e trauma sexual.

Essa ideia das razões para o uso de uma máscara é seriamente explorada por diversas personagens e proporcionada pela maneira como Lindelof conta a história, mudando frequentemente o ponto de vista., uma característica que já é conhecida dele de trabalhos anteriores como Lost e The Leftovers. O objectivo é que a história mude dependendo de quem a está a contar, enriquecendo assim, o enredo. Esta forma de contar permite que a história seja imprevisível e, ao mesmo tempo, facilita uma análise detalhada sobre as personagens. Os episódios “Little Fear of Lightning” e “This Extraordinary Being” são bons exemplos dessa prática.

A série pode ser apreciada por qualquer indivíduo que não tenha lido a BD ou visto o filme. Contudo, é mais gratificante a experiência se já estiverem familiarizados com a história original. As pessoas que só viram o filme, recomenda-se que pelo menos leiam “Under the Hood”, a autobiografia da personagem Hollis Mason, tendo em conta que a série explora a origem do grupo “Minutemen”.

Para concluir, Watchmen é uma continuação respeitosa à banda desenhada, que usa igualmente o género de super-heróis para contar uma história profunda e complexa sobre temas socioculturais e políticos.

Texto de João Fernandes

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