‘What Kinda Music’? O groove de Tom Misch e a pujança de Yussef Dayes
Depois do sucesso de “Geography”, o disco de Tom Misch lançado em 2018, o músico inglês tem dado cartas pela sua polivalência instrumental e por uma voz serena e adaptável a esta nova vaga de talentos que deambulam entre o jazz, o R&B, o hip-hop e o soul. Aos 24 anos, Misch apresenta o seu novo disco, fazendo-se acompanhar do virtuoso e experimentalista baterista Yussef Dayes, mais conhecido pela sua parceria com Kamaal Williams. A dupla, que se intitula Yussef Kamaal, compôs e lançou “Black Focus”, em 2016, quee permite perceber a fusão daquele jazz fusion de Miles Davis, John Coltrane e Herbie Hancock com este registo contemporâneo do jazz urbano britânico. “What Kinda Music” trata-se de um disco em muito instrumental, embora a voz de Misch permaneça bem viva, e partilha destas vibrações que comungam de um jazz ritmado e pujante, em fusão com o hip-hop, com a música eletrónica e com o próprio rock.
Aquilo a que este álbum se propôs, desta feita, foi a esta fusão entre as mentalidades e as personalidades musicais de Misch e de Dayes. “What Kinda Music”, “Lift Off” “Kyiv” e “Nightrider” – esta contou com a voz do norte-americano Freddie Gibbs – foram os quatro singles que anteciparam o lançamento do disco. “What Kinda Music”, que é a primeira do disco e arranca com um What Kinda Music? Hey! que Tom Misch entoa com Loyle Carner, também ele cantor desta nova vaga de talentos britânicos, ao som das vigorosas batidas de Dayes. Sente-se o fluxo da voz e das teclas de Misch, fazendo-se valer do acompanhamento da bateria para prolongar um ooooh que, apesar de convidar a algum dramatismo – o violino que o músico Tobie Tripp usa nesta faixa ajuda a essa sensação -, também é dançável. A sua letra permite perceber que são os demónios dos quais se procura fugir e que, por mais que se dissipem permanentemente, estarão por lá, a relembrar a vida e o passado vivido, atormentado mas afugentado.
“Festival”, que ainda não era conhecida, prolonga a companhia da voz de Misch com a efervescência das baquetas de Dayes. De novo, a presença do eco do cantor para proporcionar amplitude e largura a este som que parece mais recheado e completo com a presença da percussão. De novo, um final similar a “What Kinda Music”, em que são os instrumentos a encaminhar toda a música, acompanhados por Misch a entoar still here e o seu familiar ooooh. Esta faixa traz Tobie Tripp no violino, mas também Kaidi Akinnibi, promissor saxofonista inglês que havia já colaborado com Misch em “Day 4: Everybody Get Down”, que faz parte do EP do cantor “5 Day Mischon” (2017). Por sua vez, “Nightrider” – que Misch estreou ao lado de John Mayer, no festival “Crossroads”, organizado por Eric Clapton em setembro de 2019 – traz de novo a voz de Misch, em conjunto com o seu convidado de luxo, Freddie Gibbs, aos quais se junta Mr. Dayes with the break of the drums como pano de fundo (o neozelandês Jordan Rakei empresta a sua voz naqueles oooooh que vão ocorrendo entre os versos da canção, assim como atrás de Misch durante o refrão). O carro em que seguem no videoclip deste tema começa, a meio do percurso, a voar e esse Corvette pauta uma viagem que se torna cada vez mais inebriante e descontraída, mais fluída e imersiva neste prolongado nightriding.
De seguida, “Tidal Wave” entra em força com a orientação da bateria de Dayes até à guitarra de Misch. É a que traz o refrão mais forte até ao momento, com uma sensação de caos e de força que as outras, até ver, não transportam. Anteveem, de certa forma, os rufares mais intensos e mais instrumentais que se seguem. Aqui, à dupla Misch-Dayes, juntou-se o baixista Rocco Palladino, o filho do conhecido e também baixista galês Pino Palladino, que já colaborou, entre outros, com os Pink Floyd, com Eric Clapton e com John Mayer, no seu John Mayer Trio (em conjunto com o baterista Steve Jordan). É uma presença que se continua a sentir ao longo do álbum, em especial em “Lift Off”, “Kyiv”, “Sensational” e A própria voz de Joel Culpepper, também cantor britânico, reforça o volume vocal da música, fazendo as suas linhas traseiras perante o protagonismo de Misch.
“I Did It For You” já regressa com as tonalidades de groove e transporta aquelas energias que o álbum “Geography” tanto partilhou. “Sensational”, a mais curta do álbum, tendo só um minuto e meio de duração, deixa correr pelas veias um bombear de instrumentos e de eletricidade musical, com muita repercussão e com uma espontânea sensação de profundidade. Porém, em “The Real”, é quase como se entrássemos na constelação de estrelas do hip-hop americano, naquelas canções de Kanye West ou de Anderson .Paak, em que se recorre a samples de artistas de outras gerações e de estilos, também eles, diferentes. Neste caso, ouvem-se trechos de “Ain’t Nothing Like The Real Thing”, na versão de Aretha Franklin, datada de 1974 (a versão original é a da parceria de Marvin Gaye e de Tammi Terrell, de 1968), que acaba por inspirar o decurso da canção. O prolongamento da canção traz mais proximidade ao R&B com a voz de Misch e com a sua atitude quase carpe diem que tanto o carateriza nas suas letras e na sua dicção, assim como o sintetizador em que vai dando essas graças que fazem revelar o R&B.
Em “Lift Off”, a euforia musical é a grande protagonista, bem mais sólida e consistente, com um autêntico show de cordas, ao qual se complementa a maestria das baquetas de Dayes, que, implicitamente, pauta toda a trajetória deste discurso musical. É uma bomba de energia que, conforme o nome indica, eleva e ascende. Novamente a tal reverberação da voz de Misch, que a estica nas ondas de som que acompanham bateria e cordas neste movimento compassado, com um simples baby it’s true, I did it (all) for you. Mais risco traz o sintetizador que é tocado em “Last 100”, na companhia da sociedade voz-cordas-bateria, em que a reverberação faz parte, desta vez, do pano de fundo da música – o comum oooooh -, e onde Misch, que também assume o baixo aqui, vai lá acima com a voz, em especial no seu refrão. Ajuda também a presença da voz de pano de fundo de Vula Malinga, uma vocalista imponente também ela inglesa. Com isto, consegue dar mais um empurrão energético, repleto de uma euforia que não precisa do sorriso para se ver alegre.
“Kyiv”, à imagem de “Lift Off”, também se coloca como um brilhante discurso de cordas instrumentais. No entanto, e ao contrário da levitante “Lift Off”, que é mais estrondosa e ruidosa, “Kyiv”, que foi gravada, precisamente, em Kiev, na Ucrânia (tal como “Lift Off”), é mais groovy, posicionando-se mais perto daquelas primeiras experimentações de Misch antes do seu primeiro disco. Porém, a diferença sente-se mesmo com a presença de Dayes, que se complementa bastante bem até nesta passada, ele habituado a ser virtuoso em notas bem mais altas. Os louvores finais e as exultações mostram a alegria naquilo que foi composto e bombardeado. “Julie Mangos” – as mangas jamaicanas – deixam os indícios dos ares exóticos, com alguns excertos de conversas entre os pais de Misch e de Dayes. Aqui, um velho colaborador dos Yussef Kamaal entra, sendo ele o baixista Tom Driessler, dando ajuda a Palladino nesta função.
É guitarra e bateria em profunda sintonização, dando um banho de R&B que inebria e que não descura as origens urbanas destes dois músicos, ao que se segue uma passada mais rápida e intensa, um pouco à imagem das experimentações feitas anteriormente. A última, “Storm Before The Calm”, é o último suspiro deste assomo musical, em que a conjugação se proporciona com inspiração e aspiração a algo mais, com o sopro de Akinnibi no seu saxofone a dar um sabor ainda mais reforçado ao R&B que tanto vem à tona. Misch pega na guitarra e no baixo e encaixa-se nesta correspondência musical da melhor forma. A versão deluxe deste disco traz mais três experimentações entre o trio Misch-Dayes-Palladino, sendo elas “Saddle”, “Tidal Wave Outro” (uma reinterpretação da própria “Tidal Wave”) e “Seagulls”. Estas são em muito similares às que estão no alinhamento-base deste projeto, embora não se possam descartar pela vivacidade e pelo virtuosismo que tanto pauta este seu discurso.
Este trabalho acaba por ser uma colaboração entre dois músicos que, embora dentro do mesmo estilo, procuraram identidades distintas. Tom Misch procurou a composição musical e o domínio de vários instrumentos para a sua música, algo mais corporizada e consistente; já Yussef Dayes sempre se reviu mais na explosão, no impacto de curta duração, num autêntico happening musical, sempre com ideias mais de experimentação. No entanto, a parceria trouxe doze músicas que acabam por ser algo distintas entre si, o que acabam por quebrar uma eventual rotina que se poderia instalar. Não é o que acontece, embora também não haja um elo condutor entre elas. Aquilo que há é, sim, uma explosão de contentamento e de euforia entre os intérpretes e os seus instrumentos, refletindo-se nessa tal amplitude musical que é trazida neste disco. Embora não com o encantamento de “Geography” ou com o frenesim de “Black Focus”, “What Kinda Music” descobre-se na fusão, no diálogo, na junção. A resposta à pergunta do álbum está dada com uma pujança cheia de groove.