“When They See Us”, de Ava DuVernay: o roubo da liberdade

por João Estróia Vieira,    26 Dezembro, 2019
“When They See Us”, de Ava DuVernay: o roubo da liberdade
WHEN THEY SEE US

Em 1955, Emmett Till, de 14 anos, viajou de Chicago até Money, Mississippi, para visitar alguns familiares próximos. Antes da viagem, Emmett foi avisado pela sua mãe:  “não olhes para os brancos a menos que eles falem para ti, sai do passeio quando eles estiverem a passar e nunca, nunca os olhes directamente nos olhos”. A mãe estava relutante como se dariam as maneiras extrovertidas de um menino de Chicago numa comunidade como Money, mas a vontade de acompanhar o tio Mose e o seu primo favorito para umas férias de Verão levaram a melhor.

“When They See Us”, de Ava DuVernay

Nessas férias, o pequeno Emmett foi acusado por Carolyn Bryant de lhe ter assobiado. Dias depois, Emmett foi raptado, espancado e sofreu um tiro na cabeça dado pelo marido de Carolyn e o seu meio-irmão antes de lançarem o corpo do jovem ao mar. Acusados de homicídio, os homens viriam a ser absolvidos por um júri constituído unicamente por indivíduos caucasianos. O ponto de viragem veio de seguida. A mãe de Emmett, mesmo com o filho num estado de desfiguração tal, massacrado pelo espancamento e tiro na cabeça, forçou que o funeral fosse feito com caixão aberto, para que toda a gente pudesse ver o estado do seu filho.

As imagens correram os Estados Unidos através dos meios de comunicação e movimentos de direitos civis. Mais do que tudo, nas semanas, meses e anos seguintes, o trágico acontecimento serviu de catalizador para o crescimento dos movimentos de direitos civis que causou um impacto sem precedente na altura na luta pela igualdade e contra a segregação racial.

“When They See Us”, de Ava DuVernay

Infelizmente, a história encarrega-se de nos recordar estes factos pelas piores razões. Dividida em quatro episódios, When They See Us é uma minissérie Netflix, realizada por Ava DuVernay (a mesma do altamente nomeado filme Selma), que se propõe a documentar a história que ficou conhecida como o caso dos “The Central Park Five”. No final dos anos 80 sucediam-se por Nova Iorque (e não só) casos de violação que ficavam por resolver. A pressão mediática e social destes acontecimentos foi tal que provocou obviamente um ponto de ebulição que viria a resultar na história retratada na série.

Por essa altura, uma jovem foi violada e abandonada às portas da morte em pleno Central Park onde nessa noite dezenas de jovens se encontravam. As autoridades, pressionadas pelo contexto social e sob o pretexto da tal reunião pré-festiva dos jovens nessa noite do sucedido, começaram a investigação por com esta premissa em mente. Dos cinco jovens levados pela polícia, quatro eram menores de 18 anos, e todos eles cumpriram penas entre 6 a 11 anos.

“When They See Us”, de Ava DuVernay

O que sobressai nesta história e na forma como nos é retratada é como as crianças foram forçadas, subjugadas e manipuladas pelas autoridades e pelo sistema Judicial para que se acusassem mutuamente, admitissem um crime que não cometeram e acabassem por ser julgadas (e condenadas) pelo mesmo. Talvez aqui recaia um pouco um dos pontos menos fortes da série: a demonstração de como o contexto social exterior (onde até Donald Trump é figura em destaque ao ter comprado uma página de jornal inteira para defender a pena de morte) foi importante na condução de toda a investigação, apesar de nos dar pequenos laivos sobre essa pressão.

When They See Us demarca-se das demais séries do estilo na forma como em poucos episódios nos leva pela jornada emocional dos protagonistas, assim como nos é demonstrada com clareza e superioridade como foram levados até esta espiral de acontecimentos e, sobretudo, a forma como a vida de cada um destes jovens inocentemente condenados foi alterada e afectada pela sucessão de acontecimentos cujo número de culpados ultrapassa o do efectivo autor do crime. Apesar da pena cumprida, a vida foi alterada de forma indelével, as pessoas passaram a tornar-se nos crimes que (não) cometeram, partindo daí para uma espiral descendente numa vida social afectada de forma permanente, ou de superação.

“When They See Us”, de Ava DuVernay

Ava DuVernay guia-nos de forma estruturada e bem conseguida por um caminho que bem reconhecemos nas suas obras e que com assinalável qualidade nos mostrou no seu documentário 13th, uma referência à 13ª Emenda à Constituição dos EUA que impede escravidão ou trabalhos forçados, excepto como punição de um crime. Um documentário que desta base parte para um debate sobre todo o sistema prisional e questão étnica associada e desde sempre presente no país e que portanto se torna num importante complemento a esta série.

Estamos perante uma das melhores séries de crime real ficcionado da Netflix desde O Caso de O.J. – American Crime Story. Prova disso foi também as onze nomeações aos Emmy, sendo a segunda série mais nomeada, apenas atrás de Game of Thrones. A vitória nessa cerimónia para Jharrel Jerome foi, através dele, o reconhecimento a um acting imaculado na série por parte de todos os seus actores. Num catálogo Netflix recheado de qualidade no que diz respeito aos documentários e minisséries de crime, esta é uma das obrigatórias.

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