“When They See Us”, de Ava DuVernay: o roubo da liberdade
Em 1955, Emmett Till, de 14 anos, viajou de Chicago até Money, Mississippi, para visitar alguns familiares próximos. Antes da viagem, Emmett foi avisado pela sua mãe: “não olhes para os brancos a menos que eles falem para ti, sai do passeio quando eles estiverem a passar e nunca, nunca os olhes directamente nos olhos”. A mãe estava relutante como se dariam as maneiras extrovertidas de um menino de Chicago numa comunidade como Money, mas a vontade de acompanhar o tio Mose e o seu primo favorito para umas férias de Verão levaram a melhor.
Nessas férias, o pequeno Emmett foi acusado por Carolyn Bryant de lhe ter assobiado. Dias depois, Emmett foi raptado, espancado e sofreu um tiro na cabeça dado pelo marido de Carolyn e o seu meio-irmão antes de lançarem o corpo do jovem ao mar. Acusados de homicídio, os homens viriam a ser absolvidos por um júri constituído unicamente por indivíduos caucasianos. O ponto de viragem veio de seguida. A mãe de Emmett, mesmo com o filho num estado de desfiguração tal, massacrado pelo espancamento e tiro na cabeça, forçou que o funeral fosse feito com caixão aberto, para que toda a gente pudesse ver o estado do seu filho.
As imagens correram os Estados Unidos através dos meios de comunicação e movimentos de direitos civis. Mais do que tudo, nas semanas, meses e anos seguintes, o trágico acontecimento serviu de catalizador para o crescimento dos movimentos de direitos civis que causou um impacto sem precedente na altura na luta pela igualdade e contra a segregação racial.
Infelizmente, a história encarrega-se de nos recordar estes factos pelas piores razões. Dividida em quatro episódios, When They See Us é uma minissérie Netflix, realizada por Ava DuVernay (a mesma do altamente nomeado filme Selma), que se propõe a documentar a história que ficou conhecida como o caso dos “The Central Park Five”. No final dos anos 80 sucediam-se por Nova Iorque (e não só) casos de violação que ficavam por resolver. A pressão mediática e social destes acontecimentos foi tal que provocou obviamente um ponto de ebulição que viria a resultar na história retratada na série.
Por essa altura, uma jovem foi violada e abandonada às portas da morte em pleno Central Park onde nessa noite dezenas de jovens se encontravam. As autoridades, pressionadas pelo contexto social e sob o pretexto da tal reunião pré-festiva dos jovens nessa noite do sucedido, começaram a investigação por com esta premissa em mente. Dos cinco jovens levados pela polícia, quatro eram menores de 18 anos, e todos eles cumpriram penas entre 6 a 11 anos.
O que sobressai nesta história e na forma como nos é retratada é como as crianças foram forçadas, subjugadas e manipuladas pelas autoridades e pelo sistema Judicial para que se acusassem mutuamente, admitissem um crime que não cometeram e acabassem por ser julgadas (e condenadas) pelo mesmo. Talvez aqui recaia um pouco um dos pontos menos fortes da série: a demonstração de como o contexto social exterior (onde até Donald Trump é figura em destaque ao ter comprado uma página de jornal inteira para defender a pena de morte) foi importante na condução de toda a investigação, apesar de nos dar pequenos laivos sobre essa pressão.
When They See Us demarca-se das demais séries do estilo na forma como em poucos episódios nos leva pela jornada emocional dos protagonistas, assim como nos é demonstrada com clareza e superioridade como foram levados até esta espiral de acontecimentos e, sobretudo, a forma como a vida de cada um destes jovens inocentemente condenados foi alterada e afectada pela sucessão de acontecimentos cujo número de culpados ultrapassa o do efectivo autor do crime. Apesar da pena cumprida, a vida foi alterada de forma indelével, as pessoas passaram a tornar-se nos crimes que (não) cometeram, partindo daí para uma espiral descendente numa vida social afectada de forma permanente, ou de superação.
Ava DuVernay guia-nos de forma estruturada e bem conseguida por um caminho que bem reconhecemos nas suas obras e que com assinalável qualidade nos mostrou no seu documentário 13th, uma referência à 13ª Emenda à Constituição dos EUA que impede escravidão ou trabalhos forçados, excepto como punição de um crime. Um documentário que desta base parte para um debate sobre todo o sistema prisional e questão étnica associada e desde sempre presente no país e que portanto se torna num importante complemento a esta série.
Estamos perante uma das melhores séries de crime real ficcionado da Netflix desde O Caso de O.J. – American Crime Story. Prova disso foi também as onze nomeações aos Emmy, sendo a segunda série mais nomeada, apenas atrás de Game of Thrones. A vitória nessa cerimónia para Jharrel Jerome foi, através dele, o reconhecimento a um acting imaculado na série por parte de todos os seus actores. Num catálogo Netflix recheado de qualidade no que diz respeito aos documentários e minisséries de crime, esta é uma das obrigatórias.