‘WHEN WE ALL FALL ASLEEP, WHERE DO WE GO?’: bem-vindos ao sonho de Billie Eilish
Quando adormecemos, para onde vamos? A pergunta que dá título ao álbum de estreia de Billie Eilish introduz o ouvinte a um mundo de personagens, histórias e peripécias desbloqueado quando a mente divaga pela terra dos sonhos. É um lugar subjectivo, e esse local inventado, bem real na psique de cada um, é o que a artista norte-americana nos convida a perscrutar ao longo de 14 temas de pop discretamente avassaladora, minimalista na sua construção e grande no sentimento que evoca.
Esse sentimento é algo inerente à música de Billie Eilish. Desde o início da sua carreira, aos 13 anos, com a suave “Ocean Eyes”, que a artista demonstrou uma voz capaz de evocar emoções profundas. No seu primeiro projecto, o EP dont smile at me, a cantora mostrou um pop e R&B leves e menos espalhafatosos, uma abordagem mais contida a um género universal. Ouvimos influências de Lorde na sua voz, mas a atitude fora de palco distingue Eilish da cantora neozelandesa: opta por uma estética de rebeldia, diferente de tudo e de todos, sem paciência para regras e espelhando uma juventude que já viu tudo e que não se surpreende com nada. E, em WHEN WE ALL FALL ASLEEP, WHERE DO WE GO?, é clara a união entre esses dois lados de Eilish.
A dicotomia entre emoção profunda e ingenuidade juvenil é um dos aspectos mais interessantes deste projecto. Depois de uma introdução humorística, “bad guy” inicia o álbum em boa forma com uma batida minimalista e dançável, enaltecida pelo arranjos vocais soberbos que circundam a voz de Eilish, que nos descreve calmamente alguém aterrador e pior que o pior dos homens. No entanto, a melodia e timbre do sintetizador que se ouve ao longo do tema mostram algo mais jocoso, um deboche gabarola e irreverente. Na bonita balada “wish you were gay”, brada em tom piano um amor não correspondido e um egoísmo ruim. Sentimos a dor na sua voz e nas suas letras (“Our conversation’s all in blue / 11 “heys” (Hey, hey, hey, hey)”). A sua entrega mais explosiva no refrão faz-nos realmente perceber o quanto sofreu por este rapaz, desesperadamente à procura de uma razão para ele não sentir o mesmo (“Don’t say I’m not your type / Just say that I’m not your preferred sexual orientation”).
A sonoridade que circunda a voz de Eilish também contribui para uma identidade característica. Em “bury a friend”, confronta-se a si mesma e ouvimos qualquer coisa de gótico no instrumental e nos arranjos vocais que assombram a melodia principal. Pelo meio, ouvem-se agrafos e vidros partidos, sons mundanos criteriosamente incorporados no pop sussurrado da artista e que a distinguem dos restantes. Em “you should see me in a crown”, torna-se na maior vilã da história e nunca perde a postura enquanto planeia a destruição de tudo e de todos. O instrumental electrónico bebe de um trap ameaçador sem nunca se deixar perder nesse mundo e criando algo distinto. Em “all the good girls go to hell”, o aquecimento global é discutido com grande leveza, com o final inevitável que toca a todos tornado sedutor pela linha de baixo possante e uns sintetizadores que parecem lembrar o g-funk nativo da Califórnia, terra onde a artista nasceu e cresceu.
Mas há momentos em WHEN WE ALL FALL ASLEEP, WHERE DO WE GO? que Eilish aborda com uma maturidade incomum a alguém da sua idade. Em “xanny”, fala com uma sobriedade assustadoramente madura sobre os amigos que vê perderem-se nas drogas, um mundo que a aborrece e que rejeita com uma contenção e desdém dignos do fármaco que despreza no título. Em “i love you”, ouvimo-la cantar uma tristeza dolorosamente tocante sobre uma relação que já viu melhores dias (“Maybe we should just try / To tell ourselves a good lie”), algo que não imaginamos que uma rapariga de 17 anos já tenha sentido. Com um instrumental esparso de guitarra acústica em grande plano, a voz de Billie é acompanhada pela do seu irmão Finneas O’Connell, mais conhecido como FINNEAS, um homem que acompanha de perto e com grande apoio a carreira da sua irmã. O mundo construído em WHEN WE ALL FALL ASLEEP, WHERE DO WE GO? é conjurado por Eilish com o apoio de FINNEAS, como um trabalho dividido que é depois apresentado pela cantora.
A simbiose entre os dois irmãos resulta numa química musical que transparece fielmente nas canções que engendram. Em “8”, a maneira como o ukulele se mistura com o bombo ribombante e a batida electrónica resulta muito bem, uma música de voz disfarçada, escrita da perspectiva de alguém magoado por Eilish. Por outro lado, “ilomilo” corta a voz de Eilish: ouvimos ecos fragmentados de um coração que procura pela sua cara-metade, com um instrumental discreto adornado por um xilofone. Mas é em “when the party’s over” que esta sintonia familiar mais se revela: a música foi escrita por FINNEAS, mas a interpretação de Eilish eleva a música a um patamar superior. Os dotes de produção do seu irmão também estão em grande plano: os arranjos vocais iniciais da cantora simulam um vento de ponderação a soprar e há também outros momentos na música que lembram a ambição vocal de Bon Iver, circundando a voz principal com mestria e critério. É por causa de momentos como estes que notamos que este duo é uma equipa de sucesso.
Mais do que uma questão, WHEN WE ALL FALL ASLEEP, WHERE DO WE GO? é um convite. É uma carta de apresentação de uma das mais interessantes artistas no panorama pop actual, um incitar de descoberta de uma sonoridade característica e convidativa. É o primeiro grande estrondo de uma artista que destila o seu imaginário num conjunto de temas por vezes emocionais, por vezes brincalhões, mas sempre com uma sonoridade distinta. É um sonho tornado música e estamos todos convidados para fechar os olhos e fugir para a terra adormecida onde Billie Eilish explode majestosamente.