Yann Tiersen: uma odisseia ao infinito para todos

por Sofia Matos Silva,    15 Outubro, 2019
Yann Tiersen: uma odisseia ao infinito para todos
Fotografia de Sofia Matos Silva
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Ao longo da vida, vamos deixando a música ditar como nos sentimos; é inevitável. A voz a berrar-nos ao ouvido toda a raiva do mundo deixa-nos irritados. A história do amor perdido e do coração partido deixam-nos empaticamente tristes. Associada a este mistério está a palavra. As palavras, esses conjuntos de letras ambíguos, rebeldes e incontroláveis, dizem mais, naturalmente, na sua presença do que na sua ausência – apesar de a sua ausência também dizer algo, por vezes. As notas musicais, no entanto, compreendem em si todos os significados do mundo.

Os Geysir são um grupo francês de música eletrónica instru(senti)mental. O público que espera o piano de Yann Tiersen fica agradavelmente surpreendido com a prestação do duo. Marie-Céline Leguy e Lionel Laquerrière atuam alternando entre os sintetizadores e as cordas. Pela quarta música já a plateia abana a cabeça ao som da batida; por entre luzes vermelhas e azuis, a melodia hipnotizante cria uma espécie de transe. A sua breve atuação termina com os dois a tocar de frente para o Coliseu, Marie no baixo e Lionel na guitarra.

“A deep chesty bawl echoes from rimrock to rimrock, rolls down the mountain, and fades into the far blackness of the night. It is an outburst of wild defiant sorrow, and of contempt for all the adversities of the world”. A odisseia sensorial começa com uma voz feminina que, durante cinco minutos, lê o capítulo “Thinking Like a Mountain”, oriundo da obra “A Sand County Almanac And Sketches Here And There”, de Aldo Leopold. Yann Tiersen sempre relacionou as suas composições com a Natureza; numa altura em que as alterações climáticas assumem o centro das preocupações mundiais, a mensagem de Tiersen é ainda mais poderosa. “Perhaps this is behind Thoreau’s dictum: In wildness is the salvation of the world. Perhaps this is the hidden meaning in the howl of the wolf, long known among mountains, but seldom perceived among men”.

A experiência de estar num espaço como o Coliseu do Porto a ouvir Yann Tiersen é surreal – surreal, a palavra que usamos como recurso quando as palavras nos faltam para descrever a irrealidade da realidade. O músico entra em palco sozinho; com um único foco de luz branca a iluminá-lo, Tiersen parece flutuar no espaço. O fumo claro que se move pelo feixe de luz cria a ilusão de que ascende ao paraíso e todos nós com ele também – quer seja o paraíso algo religioso, isotérico ou um qualquer outro local incorpóreo onde apenas as almas com este tipo de dom têm permissão de entrada.

O multi-instrumentista arranca o espetáculo com casa cheia. “Porz Goret” – do álbum EUSA, de 2016 – é a primeira composição a ser tocada. “Naval” é mais antiga; pertence à banda sonora do filme “Tabarly”. De The Lighthouse houve-se “La dispute”. Tiersen escolhe, assim, um trio inicial que nos deixa vulneráveis. Em menos de vinte minutos, o francês consegue quebrar todas as barreiras, derrubar todos os muros e descobrir todas as frinchas por onde entrar: as notas musicais invadem-nos, percorrem-nos da cabeça aos pés. A emoção de Tiersen é a nossa emoção, os sentimentos cujas histórias nos são contadas são os nossos também.

“Obrigado. So, we’re four on stage tonight”. O francês apresenta os seus músicos e a respetiva nacionalidade, assim como o gravador de fita que assume o lugar de destaque em palco. Ao longo do espetáculo, este reproduz sons naturais – de humanos, de animais e da Natureza -, transportando o Coliseu pelo mundo fora, numa viagem sem limites de tempo nem espaço. Tanto se aterra em memórias de infância, como na Floresta Tropical Amazónica, como no topo de um glaciar islandês.

ALL. O trabalho de todos e para todos. Tiersen toca “Tempelhof” – acompanhado de Alex, o gravador – iniciando, assim, a épica aventura de uma hora que é o disco. Os músicos que o acompanham nesta tour entram para “Koad”; para “Erc’h”, Tiersen move-se por entre instrumentistas e instrumentos. Caminhando pela “Usal Road”, avança de arco em riste: o som do violino enche o Coliseu, não deixando azo para espaços vazios. Por esta altura, o público encontra-se silencioso, perdido por entre graves e agudos, teclas e cordas, pássaros e brisas.

Desbravando o território conhecido que é ALL, tocam-se “Pell”, “Bloavezhioù”, “Heol”, “Gwennilied”, “Aon”, “Prad” e “Beure Kentañ”. Tiersen toca nas teclas como se tocasse nos locais vazios dentro de nós e os preenchesse ora de inquietude, ora de leveza. O espetáculo é a verdadeira experiência sensorial em toda a sua plenitude. O espetador esquece o mundo exterior e vive apenas o momento. Talvez seja esse o grande objetivo da música: dar sentido a algo que nunca terá sentido, porque a vida tem sentido, mas pouco, e só às vezes. Em momentos como este.

Para a segunda parte do concerto, Tiersen guarda uma outra odisseia: a Voyage com Amélie até ao Infinity, passando por uma breve Les retrouvailles na Cascade Street. Yann Tiersen é a prova viva de que a arte pode ser intervencionista e apaixonante em simultâneo. Num concerto intimista – ainda que distante -, o compositor arrebata a sala com o seu talento e a sua intensidade. O fim da atuação – pré e pós encore – é recebido com um aplauso estrondoso. Tiersen espalha partes de si nas composições que cria; nesta noite, essas partes passam a ser nossas também.

A reportaram não teve cobertura fotográfica pois não houve autorização para a captação de imagem.

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