‘You Were Never Really Here’ e a brutalidade do trauma

por João Pinho,    7 Junho, 2018
‘You Were Never Really Here’ e a brutalidade do trauma
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You Were Never Really Were é o expoente máximo da violência. Nele vemos um Joaquin Phoenix num período de desespero, traumatizado pelo passado nublado que o persegue a qualquer momento. A fisionomia deste demonstra as cicatrizes do passado e um sofrimento endurecido, uma verdadeira besta de martelo na mão. De forma intensa e sem deixar o espectador respirar, o som metálico, composto por Jonny Greenwood, dos Radiohead, vai controlando a tensão das cenas e prevendo a violência das cenas futuras.

Para definir melhor o filme, utilizaria a seguinte frase: a brutalidade do trauma. Esta brutalidade tanto é visível na forma como ele realiza as suas missões no papel de mercenário, como na própria forma como sobrevive ao quotidiano. A primeira é caracterizada de forma incrível. Desde as escolhas dos materiais que compra na drogaria à forma meticulosa como executa o assassinato. Calmamente percorre a área de acção, encontra as fragilidades na segurança do alvo e, com uma força imparável e indomável, destrói tudo à sua frente. Numa entrevista, o realizador coreano Chan-wook Park, reflectiu na violência gráfica das armas brancas em detrimento da utilização das armas de fogo, muito utilizadas nos filmes ocidentais. Segundo ele, a arma branca, neste caso o martelo, obriga o espectador a chocar com a realidade de uma pessoa a matar outra de uma forma que não é instantânea e é muito mais violenta. O sangue salta, os ossos são partidos e as expressões faciais são visíveis à luz do dia. E é esta imagem que nos é transmitida por esta personagem. Alguém que é meticuloso, altamente frio e eficiente. Saltando de divisão em divisão da casa vemos corpos estendidos no chão em sangue e com um golpe no corpo. Uma força da natureza.

Apesar de todo o sofrimento constante, que chega de forma brutal e sem qualquer padrão, ainda tem na sua vida uma razão para viver, a sua mãe. É nela que deposita o seu lado mais humano. Porém, por mais contraditório que pareça, esta relação é emocionalmente perigosa porque situa-se num limbo entre a devoção de filho e o ódio mais puro. Enquanto a sua mão toma banho ele vai deixando cair uma faca no chão e, de forma instintiva, no último segundo desvia o pé. Este processo é feito de forma sistemática como se o próprio tivesse criado um teste onde ele avalia os seus impulsos para sobreviver. Até que ponto ele consegue endurecer este ambiente tóxico?

Contrastando com esta violência bruta, em dois momentos somos surpreendidos com um lado humano da personagem, para além de um primeiro já referido relativamente à sua mãe. Um primeiro quando compra bebida e comida para a jovem que resgatou e uma segunda quando se deita ao lado de um dos assassinos da sua mãe enquanto o primeiro está no seu leito de morte. A segunda cena é a que pode mais surpreender o espectador. Mesmo sentindo uma enorme dor e um ódio pelo assassino, não deixou de dar valor à vida humana e respeitar o último desejo da pessoa. É tão estranho que um ser humano no meio de tanta confusão, no meio de um turbilhão de sentimentos que se juntaram já a uma mente instável tenha encontrado um momento de solidariedade e de compaixão para com uma segunda pessoa, ainda por cima naquele contexto. Após esta cena, Joe decide fazer um funeral para a mãe num lago criando uma das cenas mais bonitas do filme. Por momentos parece que ele decide partir com a mãe para o outro lado, um suicídio compreensível que contém uma beleza imaculada pelos raios de luz que reflectem na água. Talvez seja dos raros momentos em que podemos calmamente reflectir sobre as acções da personagem.

O trauma relativo aos tempos em que esta personagem foi militar acabou por não ser suficientemente bem explorado. Mesmo que os traumas de infância também surgissem ao longo do filme de forma inesperada e sempre durante uns meros segundos, este primeiro foi mais difícil de compreender. Digo isto, porque não foi legível a razão exacta pela qual acabou por ficar com stress pós-traumático. Será que foi pelo simples facto de ter estado numa zona de guerra e a isso naturalmente estar a par um conjunto de situações horríveis ou será que aconteceu algo distinto na vida dele? Se o filme se tivesse alongado durante mais uns minutos facilmente esta parte teria sido mais aprofundada, obviamente sem contrastar com a tensão que foi sendo criada ao longo do filme.

Porém, não é por isso que não deixa de ser um dos melhores filmes deste ano e que, infelizmente, passou ao lado dos holofotes, um ano após a sua estreia no festival de Cannes. A realizadora escocesa consegue criar um thriller cheio de acção e tensão na cabeça de uma personagem complexa que vive no mundo underground de uma cidade corrompida até ao sistema político. Brilhante!

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