100 anos depois de “Demian”, de Hermann Hesse, a guerra entre os dois mundos continua

por Ana Monteiro Fernandes,    19 Dezembro, 2019
100 anos depois de “Demian”, de Hermann Hesse, a guerra entre os dois mundos continua

Clássico da literatura do século XX, Demian, obra-prima de Hermann Hesse, viria ao mundo envolto em mistério tal como o seu próprio conteúdo. Publicado em 1919 sob o heterónimo Emil Sinclair, só mais tarde é que o livro viria a ser atribuído ao seu verdadeiro criador. Aliás, por, supostamente, o próprio autor ser, ao mesmo tempo,  narrador autodiegético, estabeleceu-se um certo burburinho e confusão entre os leitores, especulando-se se o que era narrado teria efectivamente acontecido ou não. O que torna ainda mais curiosa toda a situação porque, como veremos no artigo, Demian retrata não só Hermann Hesse, como toda uma juventude alemã da primeira metade do século XX assim como todos nós — simples mortais do século XXI. Este ano celebra-se o centenário deste livro diamante — pode não ser muito extenso e linguisticamente não é purista, mas uma leitura rápida engana muito — por isso mesmo, 100 anos depois, chega a altura ideal para recordá-lo  e trazê-lo à liça, novamente e sempre que for preciso. Até porque esta obra não se deixa prender pela noção linear, progressiva e básica que nós temos do tempo. Ela representa o reencontro do passado, presente e futuro num só momento. 

Dois mundos em conflito

Como nada em Hermann Hesse é ao acaso, vamos começar pelo nome curioso da obra porque, a partir dele, podemos, já, tirar várias ilações. Se há algo que o nome em si, Demian,  faz lembrar é, claro está, Daemon — um conceito milenar que tem as suas raízes na antiguidade clássica, até na Grécia pré-socrática. No fundo, Daemon refere-se a algo, a um referente proveniente do intelecto, uma inteligência invisível mas independente de uma entidade física e concreta — algo que guia e orienta a conduta humana sem, no entanto, a determinar. Associou-se, posteriormente,  esse conceito a uma entidade sobrenatural ou espírito — podendo esse espírito ser, de forma antagónica, tanto benigno como um demónio (reparem bem no radical da palavra, “dem”). Há várias definições possíveis para este conceito e Sócrates (o grego, não amigo do Carlos Santos Silva) não se coibiu de contribuir para esse efeito . O filósofo dizia ter uma voz interna dentro de si que o guiava sem comprometer, no entanto, o seu livre arbítrio. Daí nasceu, então, a noção de “Daemon socrático”. O que é que isto interessa para a obra de Hermann Hesse? Tudo e mais alguma coisa. Podemos concluir dessa forma que o nome  Demian se refere a uma voz interior nossa que encerra tanto o bom como mau, o pecado e o bom, a transgressão, liberdade, a segurança e a insegurança. É este mundo de opostos e a necessidade de entendê-lo e integrá-lo na passagem da infância para o mundo adulto que guia Emil Sinclair, o protagonista. Mais uma vez reparem no nome — Sinclair. Há, aqui, uma aglutinação de “Sin”, que quer dizer pecado, como “clair”, que remete a claridade —  de novo uma união de opostos. Emil começa por relatar que, desde criança, sempre pressentiu a existência de dois mundos — um era claro,seguro, luminoso, piedoso, profundamente moral e cristão. Um mundo no qual nunca se sentiu, no entanto, completo e o levava a crer na sua própria imperfeição. Era onde pertencia a sua família, o interior da sua casa. Já o outro era o mundo da concupiscência, do pecado, o mundo obscuro dos pecadores e ladrões. Era onde pertenciam os cochichos das criadas e dos criados, os rufias da escola e todos os que pecavam à luz da moral religiosa.  Aqui vemo-nos perante um problema. Como conciliar a coexistência dos dois mundos? À luz da moral boa cristã, como justificar a existência do outro, do ímpio? Ou como lidar com essa guerra entre os dois mundos dentro de nós quando sentimos coisas que nos dizem que é pecado sentir? É então que Demian, um jovem mais velho que Sinclair da mesma escola, surge tal como o seu nome o profetisa, como uma espécie de guia para o protagonista no intento de o auxiliar livremente no caminho para si próprio. Para tal acontecer , a única via seria o entendimento e o enquadramento dos dois mundos. 

Para enquadrarmos estes dois mundos, é importante relembrarmos que este foi um livro publicado em 1919 e, com toda a certeza, escrito no decurso da Grande Guerra [1914 – 1918]. É preciso entender que as duas guerras mundiais não só colocaram, pela primeira vez, o homem face a face com toda a sua crueldade como espoletaram a necessidade do ser-humano de se pensar, interiormente, na busca de uma resposta à pergunta de como tudo o que aconteceu foi possível. Marcaram, também, a separação entre o mundo antigo e o mundo moderno da primeira revolução industrial. A progressão, até então, nunca havia sido tão rápida e começaram-se a dar os passos decisivos no desenvolvimento da psicologia, a psicanálise de Freud e a psicologia analítica de Jung.Logo no início do filme “Freud, the secret passion”, sobre Freud, deparamo-nos com três grandes factores que deitaram por terra a ideia de que o ser-humano se encontrava no centro do mundo: o primeiro factor foi a noção de que o planeta terra não se encontrava no centro do sistema planetário e girava, sim, à volta do sol;o segundo factor foi a insinuação de que o homem descendia do macaco e, por fim, a descoberta do inconsciente que destituía o ser-humano do seu completo auto-controlo e racionalismo. A geração de Sinclair e, consequentemente, a geração do próprio Hermann Hesse teve, portanto de se repensar à luz desse mundo moderno, exactamente na altura em que o cristianismo ou Deus começaram a ser repensados, rebatidos ou analisados sob uma outra forma. Convém não esquecer que Nietzsche já havia dito que Deus estava morto e que fomos nós que o matamos. É necessário notar que essa frase não significa mais do que a morte ou queda de um ideal unilateral. A morte de um mundo dá lugar a outro. Melhor, pior, não sabemos. O que sabemos é que Nietzsche também criticou os deuses ou os ideais que criámos para nós, posteriormente, e que seguimos cegamente. Não lhes chamamos Deus, formalmente, mas na sua unilateralidade (que Nietzsche tanto criticava) é como se desempenhassem esse papel. 

O misticismo e a influência de Carl Gustav Jung em Demian

“Demian” não é um livro teológico mas é um livro que pensa a religião, sem dúvida alguma. E a forma como combate, rebate ou pensa esse mundo é, justamente, com o resgate do misticismo filosófico milenar que engloba, igualmente, o caos e a ordem, o bom e o mau. Ou seja, para existir um mundo, não é necessário nem convém subtrair o outro. Esta ideia de complementaridade, da totalidade, da união dos opostos é, demarcadamente, taoísta como analítica. A própria forma como Sinclair descreve a existência de um mundo luminoso e de um mundo obscuro e secreto, a forma como a existência desse mundo obscuro o fez distanciar-se do cristianismo da sua família, faz lembrar imenso a própria forma como Jung descreve esses mesmos sentimentos em Memórias, Sonhos e Reflexões, mesmo que esse livro tenha sido escrito muito mais tarde. Não obstante, aproxima-se muito da própria ideia de Jung do cristianismo e da forma como foi introduzindo nos seus estudos e conceitos, filosofias e mitos não só da antiguidade clássica mas, essencialmente, orientais. Outra grande influência junguiana é o própria inclusão do inconsciente colectivo — essa própria ideia de que o homem pode carregar em si instintos ou uma história do mundo. A noção de que se tudo desabasse e só restasse uma criança e que, consequentemente, esta seria capaz de erguer tudo o que fora outrora a humanidade é, demarcadamente, uma alusão a essa teoria que marcou a cisão entre Jung e Freud. Hermann Hesse também apresenta na sua obra uma ideia não linear de tempo. Isso está expresso na própria personagem Demian, na forma como o jovem é caracterizado. Trata-se de um rapaz novo mas parece mais velho e sabedor para a sua idade, para começar. Sabia de conceitos impossíveis para a sua idade, já há muito esquecidos. A forma como o misticismo se encontra com o actual do livro é, já por si, uma forma de como o passado, o presente e o futuro podem ser uma só coisa ou encontrarem-se num só momento. Aqui, há que reconhecer, não podemos deixar, igualmente, de fora, o conceito de eterno-retorno de Nietzsche. 

Os sonhos — a sua simbologia e consequente representação pictórica através de desenhos — também apresentam uma carga analítica e um conceito forte de atemporalidade. Isso é demonstrado, especificamente, através da imagem do pássaro e da sua representação como uma espécie de daemon. Através da ave, podemos perceber uma outra associação importantíssima, a associação do nascimento da ave do ovo com o nascimento do homem além das suas ilusões e protecção. Isso faz-me pensar no quadro de Dali em que vemos, justamente, um homem  a sair de um ovo gigante. Trata-se de outro conceito de Jung que também foca a separação do homem da protecção da infância (embora não a deva negar) e a forma como se projecta no mundo. Como, dessa maneira, acaba por dar lugar ao nascimento de um novo mundo interno e como isso está, igualmente, relacionado com os outros seres e mundo externo que também influencia. No fundo, é disso mesmo que este livro trata. A busca de si mesmo de um jovem que tem de se encontrar e crescer num mundo que não é o da sua família e como, de forma independente, pode ajustar e regular por si só o que é o bem e o mal num tempo às portas da Grande Guerra. É o nascimento do homem, da sua ave do ovo, fora dos equívocos que se criam na nossa vida. É o caminho que tem de fazer até si mesmo de forma una e completa. 

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