100 anos do génio Richard Feynman, Nobel da física e um dos pioneiros da electrodinâmica quântica
Ao procurar num dicionário, ou no Google, qual o significado da palavra ‘génio’, obteremos uma definição corrente (e ao mesmo tempo algo subjectiva) de alguém que possua capacidades muito superiores às do ser humano comum, ou um talento invulgar e admirável que o faça ser distinguível do comum dos mortais, ou ainda que tenha uma vertente criativa impressionante que o coloque, de modo empírico, numa posição de grande prestígio, admiração e veneração perante toda uma sociedade.
Poderíamos encontrar, ao longo da história da humanidade, várias entidades às quais foi atribuído um estatuto de ‘génio’. Encontraríamos certamente filósofos, matemáticos, cientistas, artistas, escritores, músicos, desportistas, entre tantos outros que deixaram um contributo marcante na sua área por via das suas brilhantes capacidades. Quando se fala em ‘génio’, por norma surge no nosso imaginário alguém com cabelos grisalhos despenteados, testa franzida e bigode, aquela que é a figura do físico Albert Einstein e que será provavelmente considerado, pela comunidade em geral, a personalidade que mais se aproximou da posição de ‘génio’, dadas as suas vertentes intelectuais brilhantes. E, não haja dúvidas quanto a isso, Albert Einstein foi a grande figura da ciência do século XX e uma das maiores figuras científicas e humanísticas de todos os tempos. O seu contributo inspirou outros tantos cientistas e também a humanidade, que se viu deslumbrada com as suas potencialidades extraordinárias.
Contudo, e voltando novamente ao conceito de ‘génio’, o significado desta palavra, como o de outras palavras do nosso vocabulário, pode sofrer alterações, formando assim outras palavras com diferente significado partindo de um conceito base. Logo, e se ser-se génio fosse algo para além deste conceito? Fosse alguém que tivesse tais capacidades admiráveis, mas que também tivesse capacidade de as partilhar com a maior das simplicidades com uma pessoa comum? Alguém que nos conseguisse dar exemplos cativantes e que conseguisse transmitir a sua paixão pela ciência deixando-nos vidrados e apaixonados também por esta? Alguém capaz de se sentar ao nosso lado numa esplanada a beber uns copos, falando-nos de física teórica como quem fala dos temas mais banais da actualidade, e permitindo-nos perceber todos aqueles conceitos mais complexos, mesmo não conhecendo as três leis de Newton ou o que são exactamente as equações de Maxwell?
Ao juntar estas características teríamos uma definição maior do que a própria definição de ‘génio’, e dificilmente encontraríamos uma palavra para esta definição a que poderíamos chamar ‘ser-se mais do que génio’, mas talvez fosse possível encontrar alguém no universo científico que lhe pudesse dar este significado e que, assim, lhe fosse conotado de uma maneira espontânea e natural. E é aqui, cem anos após o seu nascimento, que provavelmente encontramos a figura que consegue corresponder a todas estas características raras num ser humano e que, por isso, se mantém ainda hoje como uma referência para os físicos, cientistas e para a humanidade em geral, pelo seu estilo único, junção de genialidade, paixão, excentricidade com um toque de loucura. É aqui que encontramos Richard Feynman, como se ainda ontem o estivéssemos a ouvir numa das suas aulas a falar de ciência como se de uns versos de um simples poema se tratasse.
Nascido em Nova Iorque a 11 de Maio de 1918, Richard Philip Feynman é considerado um dos maiores vultos da ciência do século XX, século que, para alguns físicos e historiadores, está dividido em duas grandes figuras: a primeira metade pelo tão ilustre Albert Einstein, e a segunda metade por este outro grande físico que celebraria hoje um século de vida se ainda estivesse entre nós. Oriundo de um família de ascendência judaica e incentivado pelo seu pai desde muito novo a estudar ciências, com apenas 10 anos Richard Feynman (ou Dick, como era conhecido no seu grupo de amigos) montou o seu primeiro laboratório sozinho, onde realizava experiências já de grande relevo, mostrando assim desde muito cedo grande aptidão para a matemática e para as ciências no geral. Com 17 anos parte para Boston e ingressa no MIT (Massachusetts Institute of Technology), ainda hoje uma das mais prestigiadas academias, mudando-se mais tarde para Princeton onde conclui o seu doutoramento. Na altura casa-se com a sua namorada desde os tempos de juventude, Arlene, pouco tempo depois de lhe ser diagnosticado um tumor no pescoço, que viria a agravar-se com o passar do tempo.
No início da década de 40 do século XX, a segunda grande guerra começa a atingir dimensões alarmantes e assustadoras, e o Projecto Manhattan liderado por J. Robert Oppenheimer procurava os melhores cientistas para o desenvolvimento da bomba que mais tarde viria a arrasar com as cidades de Hiroshima e Nagasaki no Japão, neste que era o último país do eixo que resistia à rendição. Feynman ingressa no projecto dando o seu contributo máximo enquanto cientista, e é nesta altura também que passa pelo momento mais difícil da sua vida, não só perdendo Arlene, o amor da sua vida, vítima de tuberculose quando este tinha ainda 27 anos, como também ao apercebe-se do conteúdo obscuro do projecto no qual estava envolvido e de que a ciência, a sua área de estudo que o fascinava desde muito novo, poderia ser usada para o mal, remetendo assim para o lado mais negro que há no ser humano. Esta foi então uma fase em que Richard Feynman bate no fundo, tendo um período mais isolado com o mundo. Contudo, pouco tempo após este intervalo mais obscuro, Feynman consegue ganhar a energia e a força para se reerguer de novo, procurando novos caminhos. E a verdade é que o melhor da sua vida ainda estava para vir.
Richard Feynman resolve passar um ano sabático no Brasil, onde chegou mesmo a aprender a tocar bongo e a falar português, até receber um convite para se tornar Professor de Física em Cornell, ingressando por uma carreira mais virada para o lado académico, e começando assim a sua vida do zero. Durante os anos 50 casa-se com Mary Louise Bell com quem permanece durante quatro anos, e, numa viagem no final da década, conhece Gweneth Howarth, com quem viria a casar-se e a ter dois filhos: Carl e Michelle.
Mais tarde foca-se na investigação em Caltech (Instituto de Tecnologia da Califórnia), numa altura em que a ciência estava em crise, aventurando-se numa área que lhe valeria mais tarde um reconhecimento a nível mundial, ficando para sempre na história da física: a Electrodinâmica Quântica – muitas vezes associada à sigla QED (do inglês Quantum Electrodynamics, mas que curiosamente também pode remeter para a expressão latina quod erat demonstrandum, muito utilizada em demonstrações matemáticas) -, que pressupunha as interacções das forças electromagnéticas com a teoria da mecânica quântica, uma das ferramentas mais importantes na descrição de determinados fenómenos a nível atómico.
A QED já teria sido mais ou menos abordada pelo físico Paul Dirac alguns anos atrás, mas contendo ainda bastantes lacunas. Eram necessárias novas ideias de peso e alguém que possuísse um espírito crítico, mas também bastante imaginativo para que a teoria tivesse pernas para andar. E mais uma vez encontramos Richard Feynman, desta vez no sítio certo à hora certa, pronto para prosseguir com as suas ideias aventureiras na ciência e na física, o seu campo de estudo onde se afirmava cada vez mais como uma figura marcante numa sociedade que necessitava cada vez mais de alguém que se assumisse como uma grande figura da ciência.
A sua imaginação e criatividade permitiram que criasse diagramas para tentar compreender e chegar a novas conclusões da QED, sendo estes denominados por “Diagramas de Feynman”. Feynman ficara tão fascinado com a sua pequena invenção que se tornara numa diversão: chegou mesmo a pintar, na sua carrinha Van com a qual passeava em família, os seus famosos diagramas. O seu trabalho valeu-lhe o Prémio Nobel da Física de 1965, partilhado com os físicos Sin-Itiro Tomonaga e Julian Schwinger, pelos seus contributos para desvendar nos mistérios da QED.
O fascínio pelos fenómenos a uma escala quase infinitamente pequena torna-se uma área onde Feynman se sente muito confortável enquanto físico. A nanotecnolgia por exemplo, uma das áreas da ciência mais cativantes e muito na moda na ciência nos dias de hoje, foi uma espécie de previsão sua quando era apenas um sonho estratosférico, estando muitas vezes o seu nome associado à sua fundação como vertente científica. É também nos anos 60 que Feynman inicia uma série de conferências televisivas que se tornam famosas dada a sua simplicidade em explicar o que de facto era a física e o seu sentido de humor característicos, que fascinava aqueles que assistiam às suas aulas, fazendo com que os espectadores ficassem inspirados pela ciência em si.
Durante os anos seguintes, Richard Feynman foca-se mais na divulgação científica, sendo aconselhado a escrever as suas lições, que a vieram ter o nome de “The Feynman Lectures On Physics”. Estas lectures estão distribuídas num conjunto de três volumes e, dada a sua importância, o seu conjunto é ainda hoje considerado como “A Bíblia da Física”, dada a totalidade dos assuntos abordados e o modo esbelto e preciso como conteúdo é descrito. É também nesta altura que descobre o fascínio pelas coisas mais simples como outras áreas da ciência que não estavam directamente ligadas à física, como os vírus, o comportamento das formigas e os supercomputadores que começavam a surgir e a chamar cada vez mais a atenção dos físicos. O fascínio de Feynman era tanto que se iria transpor para coisas simplistas e até absurdas como os bongos que gostava imenso de tocar, os cofres que arrombou por mera diversão ao manipular e adivinhar códigos quando ainda estava integrado no Projecto Manhattan, e ainda os bares de striptease onde passava o tempo a fazer deduções de física teórica ao mesmo tempo que apreciava as vistas, tendo o próprio assumido um interesse louco por mulheres.
Nesta altura, Feynman embarca numa fase onde, segundo o físico e ex-aluno Freeman Dyson, torna-se “Meio génio, meio palhaço”. A verdade é que era este espírito genuíno de Feynman que lhe dava uma identidade única. O facto de agir como se fosse o mais comum dos mortais (e que na verdade era), tendo atitudes de um mero curioso que apenas quer experimentar coisas novas e saber mais sobre o mundo, permitiam que não ficasse refém de títulos como os de professor universitário, ou de vencedor de um prémio Nobel, ou ainda do estatuto de génio que cada vez mais lhe era conotado. Feynman mostrava-se assim do modo mais espontâneo e natural, sentindo-se bem com os outros e consigo mesmo, tendo o próprio admitido que nunca gostou de prémios, glórias ou qualquer tipo de consagrações que lhe pudessem ser atribuídas.
Durante a década de 80 publica o seu livro Está a brincar senhor Feynman!, que junta toda uma série de frases mais exuberantes que o próprio dissera ao longo da sua vida, bem como as suas histórias mais excêntricas que se orgulhava de ter vivido e de as partilhar com o público em geral. O livro rapidamente se torna num best seller, num sucesso inesperado que dava mais ânimo ao percurso de Richard Feynman.
No entanto, é também nesta década que a vida de Richard Feynman corre risco: é lhe diagnosticado um linfoma cancerígeno na zona do abdómen, do tamanho de uma bola de golfe. O próprio ficara fascinado com a forma do tumor, como ficara fascinado com os fenómenos mais intrigantes do mundo começando de imediato com os tratamentos necessários.
Em 1986, ocorre um acidente terrível com o Challenger, um vaivém espacial norte-americano, poucos minutos após a sua descolagem, quando este se preparava para uma missão espacial da NASA. As entidades responsáveis pela investigação do caso chamaram Richard Feynman a depor, pelo seu carácter independente e currículo científico invejável, tentando chegar à conclusão do que se teria realmente passado. Feynman pegou num dos anéis de borracha do vaivém (O-Rings) e colocou em gelo, observando a sua contracção e a sua resiliência durante uns instantes, mas não a sua ruptura. Na audiência Feynman explicou com detalhe a sua experiência simples, acabando por chegar à seguinte conclusão: os O-Rings do vaivém haviam-se contraído quando a temperatura estava baixou de zero, havendo assim um escape de combustível que provocou o colapso da nave espacial. Mais uma vez, Feynman mostrava como, com a maior das simplicidades, chegara à conclusão mais importante no tema em questão. Contudo, e apesar de se manter motivado como sempre, a luta contra a doença era cada vez mais intensa e a sua cura era cada vez mais difícil. Os tratamentos a que fora sujeito não teriam o efeito suficiente para travar o avanço do tumor, acabando por limitar o futuro da sua vida que tinha ainda muito para nos oferecer.
Richard Feynman acabaria por falecer no dia 18 de Fevereiro de 1988, aos 69 anos, em Los Angeles, após uma cirurgia sem sucesso, assinalando-se também no ano de 2018 os trinta anos do seu desaparecimento. Ao que consta, as suas últimas palavras terão sido “Odiaria morrer duas vezes. Seria tão aborrecido.”, uma frase que deixa um enigma no ar que é facilmente resolvido se olharmos bem para a sua história de vida. Deixou um legado científico invejável, inspirando outros grandes nomes da física dos dias de hoje, e passados cem anos do seu nascimento, o espírito de Feynman, bem como todo o seu trabalho enquanto físico e divulgador da ciência, permanecem actuais, alimentando, mais do que a paixão pela ciência, a paixão pelo imaginário e pelo sonho que são fundamentais para que esta prossiga.
Richard Feynman provou que, para se ser ‘mais do que génio’, não era necessária uma capacidade de raciocínio tão invulgar ou uma maior exibição das suas vertentes, mas sim uma ligeira excentricidade que, por conseguinte, se tornava numa maior simplicidade. Uma maior simplicidade em saborear o que de melhor a vida nos dá, uma maior simplicidade em imaginar e sonhar tirando partido das coisas mais simples através da diversão, uma maior simplicidade em inventar e reinventar o mundo através do prazer pela descoberta.
Apesar de ter partido a poucos meses de completar 70 anos, o percurso de vida de Richard Feynman valeu-lhe provavelmente o dobro ou o triplo do tempo que viveu. Esse tempo que, apesar de ser relativo segundo a ilustre Teoria da Relatividade de Albert Einstein, Feynman soube aproveitar da melhor forma e da maneira mais irreverente e apaixonante possível, estando ainda hoje vivo entre nós, mantendo-se enaltecidas as cores que ofereceu à ciência e às coisas mais belas que se encontram escondidas nas paixões e nos mistérios do universo que nos rodeia.