Após cerca de 40 espectáculos vistos na capital no espaço de 6 meses, uma selecção de 15 momentos memoráveis de Teatro em Lisboa (perdão Porto, Coimbra, Guimarães…) de Janeiro a Junho de 2018, e alguns dos porquês possíveis, e 30 fotografias dos espectáculos. Esta lista não funciona como difusão de gosto absoluto, mas como proposta de arquivo relativo e post-marketing.
1 – A Rainha, encenação de Ana Ribeiro (Divas Iludidas)
Uma corte pré-reinício das coisas, pejada de linguagem poética mas acessível (uma espécie de universalidade erudita, conjunção que escasseia), sob a direcção de Ana Ribeiro, com a mesmo e os actores em estado de graça Victor Gonçalves, Paulo Duarte Ribeiro e, acima de tudo, a rainha Paula Só, sangue azul e poema de Cesariny num só. A actriz já tinha sido rei (Lear) no Teatro Nacional D. Maria II em 2017, embora, como em regime de substituição de última hora de Eunice Muñoz, dessa vez era realeza em cima do joelho. Desta feita é de fazer corar a Judi Dench (e que dizer de D. Duarte Pio, caso tivesse sido espectador). Foi na Latoaria, espaço inventivo e violento, já essencial para a cultura underground lisboeta.
2 – Jângal, encenação do Teatro Praga
Jângal, a última obra de arte do Teatro Praga faz repensar umas dezenas de vezes antes do elogio ser feito – isto porque é uma obra anti-vários-mecanismos-patriarcais, incluindo o validismo. É uma selva, é uma nova maneira de estar onde ox humanxs e ox objectxs vivem no mesmo regime de vontade, de pensamento e de comunicação. Ou seja, deita o antropocentrismo por água abaixo, na medida do possível. É uma pasta com muitas pastas lá dentro e muitos problemas por resolver. É pintado de fresco. É o mundo de André E. Teodósio, Cláudia Jardim e Joana Barrios, e dos seus convidados Gisela João, que canta fado sobre beats electrónicos, Jenny La Rue, ícone da noite de Lisboa, de bola espelhada na mão e História no corpo, e João Abreu, millenial não millenial porque não encaixável, em busca de liberdade e paz de espírito. E uma aranha capitalista. E um xaile profético. E partituras que são máscaras de lobo. E o medo. E a resistência. E o agora. E o não. Etc.
3 – Banda Sonora, encenação de Ricardo Neves-Neves (Teatro do Eléctrico)
Ricardo Neves-Neves, encenador e dramaturgo essencial português, teve este espectáculo inserido na exemplar programação do Teatro Municipal São Luiz na primeira metade de 2018 (4 dos 15 espectáculos desta lista foram lá apresentados). Numa floresta de grandes proporções – cenografia quase wagneriana – cujas árvores no final ascendem aos céus, Neves-Neves dirige seis actrizes para três personagens (cada personagem é uma dupla de actrizes), exercício de precisão e virtuosismo de impressionar, corpos que povoam um imaginário entre o Grimm e a ficção científica, a Lisboa antiga e os programas da tarde japoneses, resultando num espectáculo que é cómico e sangrento ao mesmo tempo. Teatro absurdo para fazer cair o queixo.
4 – Sugar, encenação dos Silly Season
Espectáculo do colectivo Silly Seson com três partes muito definidas. Uma primeira em que o público está de pé (ou como quiser) em cena, com os actores em amena cavaqueira e enaltecimento da portugalidade (actores vestidos de cortiça e azulejos), empatias forçadas, refrões eurovisivos, o leilão/strip de um corpo masculino de ginásio, um fotógrafo (como se a gala da Caras fosse algures num evento no Terreiro do Paço ou no Lux ou na loja dos pastéis de Belém). A segunda parte é pejada de problemas, desde o excesso babilónico de informação a um late night show com uma estrela esgotada, uma actriz proibida de mentir, um actor a fazer um discurso de agradecimento a quem lhe praticou o Mal, corpos masculinos que se digladiam entre si e com o invisível, um afogamento de gala. Portanto, jovens artistas a conhecerem a negrura da vida e a expiá-la em cena. No terceiro acto, a uma corrida dos actores até ao último espectador sair deram o nome de Resistência. Um doce de intenções claras.
5 – The Swimming Pool Party, encenação de Mónica Garnel (Casa Conveniente/Zona Não Vigiada)
Uma festa beta. Sunset à volta da piscina, com indivíduos que sabem mais do que sabem e têm mais do que têm, usando status quo para impressionar. Uma festa que termina com morte e um plot twist solidamente fundado em background da personagem culpada. Ricardo Neves-Neves criou uma história que é parente muito próxima de Agatha Christie, de pormenores engraçados e pormaiores inteligentes. Mónica Garnel foi a responsável pela direcção do elenco nesta incursão ao mundo do “córror-que-seria”. Mónica Calle e Álvaro Correia interpretaram os (hilariantes) anfitriões, a própria Garnel é a empregada, e o lote de convidados energéticos e com feitios entre o entusiasmado histérico à nova-rica sem jeito, passando pela aristocrata mimada e pelo intelectual superficial (Tiago Vieira, Ana Água, Inês Vaz, José Miguel Vitorino, Rute Cardoso). Criou-se assim uma palete de caracteres rara de ver e eficaz na sua missão paródica, porém, perfeitamente possível. Juntando a isto a guitarra exímia de Sofia Vitória e temos o policial ou a comédia da década.
6 – ATMAVICTU, encenação do Bestiário
O ciclo Try Again, Fail Better do Teatro da Garagem tem assumido um papel absolutamente necessário na revelação de projectos acabados de nascer. ATMAVICTU foi a proposta do Bestiário para o ciclo de 2018, espectáculo ritualístico que causou uma série de impressões catárticas nalguns dos seus espectadores. Uma proposta de regresso ao essencial que é a tonicidade do movimento, o lavar do corpo, o espasmo – deitar fora para começar de novo. Ora, um grupo recente começar desta maneira despida mostra-os abertos para a possibilidade e para a experiência (talvez arrisque um teatro laboratório descendente directo do trabalho de Grotowski e de Peter Brook. Mesmo que involuntariamente descendentes.)
7 – 9 ANOS DEPOIS PARTE II, encenação dos AUÉÉÉU
Os AUÉÉÉU formaram-se no início da década após três anos de Escola Superior de Teatro e Cinema. Este grupo questiona e mistura barreiras entre Teatro e Cinema, entre verdade presente e encenação artificial, fala sobre os medos da juventude (como manter o equilíbrio e a vida ao mesmo tempo), sobre o papel do indivíduo no colectivo. Pelo meio parodia-se uma certa portugalidade ditatorial, parola e entusiasmada (o sistema) e os vícios de arrogância e elitismo do meio artístico (a resistência). Colocam-se assim exactamente no centro das duas frentes desta batalha entre a norma e o desvio, entre a maioria e o excepcional. Portanto, um espectáculo sobre guerra, algo de esperar, já que o ponto de partida da trilogia 9 Anos Depois é a Ilíada, o standard bélico.
8 – ACTORES, encenação de Marco Martins
Partindo das memórias verdadeiras dos actores Luísa Cruz, Miguel Guilherme, Rita Cabaço, Nuno Lopes e Bruno Nogueira, Marco orquestrou uma viagem ao resto do icebergue que é a vida de um actor – os inícios frustrados, os nãos, as audições esquisitas, os grandes momentos emocionais. Com a presença de um vídeo gravado ao vivo, que ora funcionava como primeiro ou segundo plano e com a substituição de Luísa Cruz (indisponível na altura) por Carolina Amaral, que lhe interpretou as memórias, o espectáculo ganhou uma dimensão bonecas russas – a Carolina Amaral que substituía a Luisa Cruz numa memória em que esta substituía a Isabelle Huppert; os bastidores que são cena e a cena que é o vídeo; etc. A interpretação sublime de Carolina Amaral elevava o espectáculo a zonas gloriosas (mesmo com a responsabilidade de interpretar Luísa Cruz), e cenas da Rita Cabaço, como o choro, ou a chacina, ou a dança interminável no intervalo atribuiu-lhe um lado destrutivo, surgindo um espectáculo que, sendo honesto, conseguia manter o equilíbrio.
9 – O NOVO MUNDO, encenação d’Os Possessos
João Pedro Mamede, Catarina Rôlo Salgueiro e Nuno Gonçalo Rodrigues, os Possessos, voltam a estar os três em cena, com uma multidão de actores. Um mundo de regras novas, onde as esplanadas são oásis, onde há banhos com aspecto de vaso grego, canibalismo, duas mulheres de peruca, alianças invisíveis, uma cantora de ópera com dois bailarinos, um vento que varre as crianças leves de cena, um Sol artificial que a certa altura surge e lá fica, ditadores escondidos. Este “Black Mirror de millenials” é mais um grupo jovem a chegar a uma zona de apuramento da linguagem (já acontecia com Sweet Home Europa), ou seja, a descobrir e a aplicar, de maneira bela e fundada, a Estética.
10 – QUE BOA IDEIA VIRMOS PARA AS MONTANHAS, encenação de Guilherme Gomes (Teatro da Cidade)
Este grupo de actores vindo do extinto Teatro da Cornucópia apresentou este ano o seu terceiro espectáculo, desta feita com Guilherme Gomes a ser o olho exterior e o autor do texto, numa encenação sobre a relação críptica entre três personagens recheadas de carga (passado), consciência (presente), esperança (futuro) e silêncios, criando uma obra a caminhar para aquilo que Ingmar Bergman criou no cinema (sim, com esse desespero ternurento, essa lucidez perante a figura da morte, e essa falta de jeito para lidarmos uns com os outros). Iluminados pela luz excepcional de Rui Seabra
11 – FROM AFAR IT WAS AN ISLAND, encenação de João Fiadeiro
Sobre um fundo amarelo, João Fiadeiro mostra um ponto de vista distópico do futuro, onde reina a solidão, as citações, o reproduzir de cenas, a ilógica. O monstro das redes a tomar conta de corpos sedados pelo entretenimento.
12 – O TEATRO DA AMANTE INGLESA, encenação de Jorge Silva Melo (Artistas Unidos)
Encenação minimal de Jorge Silva Melo de um texto macabro de Marguerite Duras, com interpretações convincentes. Uma assassina que não se esperava que o viesse a ser (papel interpretado por Isabel Muñoz Cardoso com crueza chocante, mas sim, brilhante)
13 – SABOR A CEREJA, encenação de Laura Morais Silva & Ana Lopes
Bubble gum no aspecto, poesia-revelação no assunto, Sabor a Cereja é a primeira colaboração artística entre Laura Morais Silva (neste, intérprete) e Ana Lopes (dramaturga), espécie de cartão de apresentação/manifesta de um patinho de baloiço que luta por se emancipar do outro (público/sociedade/olho-externo)
14 – MARGEM, encenação de Vitor Hugo Pontes
Vitor Hugo Pontes trouxe este espectáculo do Porto para o CCB. Parte de um romance de Jorge Amado e de histórias verídicas de crianças desfavorecidas, para dirigir um elenco cheio de vida, muitíssimo jovem, cheios de lata e movimento no corpo. Uma beleza.
15 – NOITE E DIA, encenação de Rita Morais & Joana Cotrim
Rita Morais, habitualmente membro do colectivo Silly Season, em 2018 uniu-se a Joana Cotrim para um espectáculo interactivo (algo normalmente embaraçoso), divertido na sua acidez, negro na sua lucidez, mas acima de tudo o que o espectáculo é + o seu contrário, é de relevar que foi um momento de partilha íntima entre intérpretes e espectadores, e isso em encenações wagnerianas não existe.
Artigo de Luis Miguel Davies
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15 momentos memoráveis de Teatro em Lisboa em 2018