Entrevista. Djuzé Neves: “Não há nenhum local, em Portugal, onde se celebre a presença africana”

por Lusa,    27 Dezembro, 2022
Entrevista. Djuzé Neves: “Não há nenhum local, em Portugal, onde se celebre a presença africana”
Fotografia de Annie Spratt / Unsplash
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Um dirigente da associação Batoto Yetu Portugal, que trabalha com crianças e jovens, defendeu ontem a criação em Portugal de um espaço que celebre a presença da cultura africana, destacando que os portugueses são “um povo misturado com vários povos”. 

Não há nenhum local onde se celebre essa presença africana. Por exemplo, existe a fundação do Oriente, mas não existe uma fundação de África ou um museu de África”, lamentou Djuzé Neves, em entrevista à agência Lusa.

E prosseguiu: “Não existe um local onde possamos aprender, de forma técnica, sobre esses detalhes”.

Djuzé Neves falava à margem de uma visita guiada pelos percursos mais icónicos da presença africana em Portugal integrados no roteiro “Espaços da Presença Africana em Lisboa” criado pela associação em 2016.

Apesar de reconhecer que a nível visual há “poucas referências” dessa história, para Djuzé Neves os vestígios visíveis e invisíveis da cultura africana estão presentes nos testemunhos das próprias pessoas e, por isso, convidou-as a partilhar essas ideias que ainda não foram exploradas, mostrando-se aberto para as recolher. 

Toda a cidade tem sofrido aqui bastantes alterações e hoje em dia temos pouca referência visível. Mas nas histórias das pessoas gostaríamos muito de ter conhecimento de mais histórias das próprias pessoas, que falassem da sua própria linhagem e nos contassem pormenores sobre essa presença, porque existem, nós é que ainda não temos conhecimento e, portanto, estamos em aberto para recebermos essas informações e para tentar continuar a conhecer”, afirmou.

O dirigente da associação explicou que a Batoto Yetu Portugal trabalha nestas temáticas “com voluntários, historiadores, arquitetos, chefes de cozinha, arqueólogos” e, no fundo, a “academia, de forma a obter elementos técnicos fidedignos para passar aos turistas”. Djuzé Neves sublinha, contudo, que “há muito mais informação que pode ser adquirida de outras formas e por outros meios”.

A ideia é também apenas estimular a que outros setores da sociedade se interessem por esta temática, valorizem, possam apoiar, estamos sempre a precisar de apoio, quer seja logístico, quer seja financeiro”, explicou. 

É nesta simbiose de culturas que o dirigente disse encontrar a raiz destes dois povos que se foram influenciando mutuamente. “Nós somos todos um bocadinho dessas misturas”, disse.

Os portugueses, no fundo, são um povo misturado com vários povos que passaram por cá e um deles é o povo africano. E, portanto, vemos isso nos portugueses, nas próprias pessoas que existem aqui e agora”, referiu. 

As influências de que fala podem, na sua opinião, ser sentidas tanto naqueles que ouvem uma música tradicional portuguesa, como naqueles que procuram satisfazer a fome com um prato típico.

Isso encontra-se no fado, mas também na cozinha portuguesa que contou com o contributo, durante anos, de pessoas de origens africanas que traziam as suas práticas, os seus temperos, o seu modo de cozinhar o frango, o modo do churrasco, o cozido à portuguesa.

Com um foco que vai para além do período colonialista e da escravatura, este projeto da Batoto Yetu Portugal vai à procura de referências mais antigas a essas épocas. É esta visão ampla que o leva a comentar, no fim da visita, o facto de nunca ter utilizado a palavra racismo e, explicou, que não o fez precisamente para enfatizar a ideia de que este “não é o foco, não é o propósito do projeto”.

Os estrangeiros falam muito mais da presença mourisca e dessa ligação a África do que dos períodos mais recentes. Querem saber muito mais sobre esse período mourisco e questionam, e trazem informações novas. Enfim, é um mundo de história que passa por aqui, assim como passa noutras diásporas”, indicou.

Com base naquilo que os povos africanos foram trazendo ao longo dos séculos, Djuzé Neves conclui que “Lisboa é um museu a céu aberto”, cuja história é para todos.

Isto não é só uma história para pessoas de origens africanas. É uma história portuguesa para todos e, portanto, se todos souberem, mais nos conhecemos melhor uns aos outros e decerto ajudará a nos entendermos melhor”, afirmou.

O dirigente associativo afirmou que, com estas iniciativas, há uma tomada de conhecimento que, quando é transmitida, se torna num contributo que pode ajudar a estreitar os laços de relação.

O nosso contributo é um pequeno contributo. Acho que é um pequeno contributo no sentido positivo de tomarmos conhecimento, de valorizarmos, de enriquecermos a nossa história, o nosso povo”, contou. 

E lamenta que estes esclarecimentos e pormenores não sejam dados nos locais de ensino, afirmando: “Deve começar pela escola a informação sobre este período do tempo, sobre a nossa composição humana”.

A confluência entre a cultura africana e a portuguesa deu frutos que perduram até aos dias de hoje e Djuzé Neves acredita que “é destas passagens que se faz Portugal”.

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