20 anos de “Humanos”: a história do disco que reafirmou o legado de António Variações
Nesta terça-feira (dia 3), António Variações faria 80 anos de vida. Em junho deste ano, fez 40 anos que o autor de Anjo da guarda (1983) e Dar & Receber (1984) sucumbiu a uma broncopneumonia bilateral. A data marcava 13 de junho, muito pouco tempo depois de ter sido editado o seu segundo longa-duração.
A causa da broncopneumonia que vitimou António nunca foi totalmente revelada, mas a especulação surgiu imediatamente: António Variações tinha sido uma das primeiras vítimas importantes do VIH em Portugal. Fruto de um preconceito gigante com a doença e de um conservadorismo enorme da sociedade portuguesa perante a homossexualidade e com corpos queer, aquele que tinha sido uma das figuras de proa da nova pop portuguesa via o público virar-lhe as costas após a sua morte. Demoraria 20 anos até que o legado musical de António Variações se afirmasse na totalidade e o consagrasse como, a par de Pedro Ayres Magalhães, uma das grandes figuras da música popular portuguesa do pós-25 de abril, como o aclamou Pedro João Santos a escrever no The Guardian aquando do 35.º aniversário da sua morte.
Em 2004, com o aproximar daquele que seria o 60.º aniversário de António Variações, caso ele estivesse vivo, e o 20.º aniversário da sua morte, surgiu a ideia do projeto que cristalizou o legado de António Variações. David Ferreira, então principal dirigente da EMI Portugal, e Paulo Junqueiro, A&R da EMI Portugal à altura, tentavam fazer algo com as gravações da mítica caixa de sapatos que havia sido entregue à editora pelo Dr. Jaime Ribeiro, um dos irmãos de António. Com a ajuda de Nuno Galopim, então jornalista no Diário de Notícias, os três conceptualizaram aquilo que seria o projeto de uma banda que daria vida a alguns dos inéditos encontrados na caixa. Esse supergrupo ganhou um nome com o tempo: Humanos.
A ideia era simples: criar uma banda que representasse aquilo que era a elasticidade e plasticidade da música e personalidade do António. Entre Braga e Nova Iorque, entre o fado e a pop, entre as suas idiossincrasias femininas e masculinas. Assim, surgiram os nomes. Nas vozes, Manuela Azevedo, Camané e David Fonseca. A produzir, Nuno Rafael e Hélder Gonçalves. Na instrumentação adicional, João Cardoso e Sérgio Nascimento. Em tempo recorde, estes músicos montaram aquilo que é o único álbum de Humanos, editado em dezembro de 2004. Humanos foi um sucesso com a crítica e com o público, tendo vendido quase 80 mil discos em menos de seis meses. Depois de várias versões de outros músicos (Delfins, Lena d’Água, Amarguinhas) e compilações editadas durante a década de 90 pela EMI Portugal, Humanos finalmente consolidou António Variações na memória coletiva. Até hoje, assim se manteve. Não só temos todos a Amália na voz, como também temos o António. Disso não há dúvidas.
Para a ocasião do 20.º aniversário de Humanos, a Comunidade Cultura e Arte foi à procura de falar com os sete elementos da banda e com as pessoas que ajudaram a tornar o projeto numa realidade. Esta é a história oral de Humanos.
Em 2001, nos escritórios da EMI, localizados na EXPO, em Lisboa, a caixa de sapatos com as famosas cassetes do António Variações, dada como perdida, é encontrada. O que se segue são os eventos que deram origem ao projeto que em 2004 se concretiza com a banda e o disco que partilham o mesmo nome: Humanos.
[David Ferreira] Penso que foi antes de agosto de 1997 que o Dr. Jaime Ribeiro, o irmão do António, entregou à EMI a caixa com as cassetes. Lembro-me que foi antes de agosto de 1997 porque foi antes da mudança de escritório da EMI.
[Paulo Junqueiro] Era uma caixa de sapatos cheia de cassetes onde estava muito material inédito do António. Guardamos a caixa no arquivo da EMI, mas nunca arranjei tempo para ouvir aquilo com ouvidos de ouvir.
[David Ferreira] Acho que eram 50 e tal cassetes, do que me lembro. E havia bobines também. Poucas, mas havia.
[Nuno Galopim] Eram bem mais de 40 cassetes.
[David Ferreira] Entretanto, durante as mudanças de escritório da EMI, fico convencido de que as cassetes se tinham perdido. Até 2001, fiquei convencido disso. Nesse ano, encontramos as cassetes no arquivo. E quando voltaram a aparecer, pedi ao Paulo para ver o que conseguia fazer com aquilo.
[Paulo Junqueiro] Sempre que o irmão do António vinha a reuniões com a EMI para falarmos do António, ele perguntava pelas cassetes e eu tinha vergonha de dizer que ainda não as tinha ouvido.
[David Ferreira] Há um dia em que tivemos uma reunião com o Dr. Jaime Ribeiro nos escritórios da EMI e, por coincidência, nesse dia também tivemos uma reunião com o Nuno Galopim para discutirmos uma compilação com música dos anos 80.
[Nuno Galopim] Lembro-me de perguntar ao Paulo e ao David no início de 2004 se a EMI ia fazer algo para celebrar as datas redondas que se aproximavam dos 20 anos da morte do António e do que seriam os 60 anos de vida dele se ele não tivesse morrido.
[Paulo Junqueiro] Foi aí onde tive a ideia de entregar as cassetes ao Nuno Galopim.
[David Ferreira] Na altura, o Nuno Galopim era jornalista do Diário de Notícias e ficou excitadíssimo com a ideia. Até ficamos surpresos pela rapidez da resposta dele.
[Nuno Galopim] Desde miúdo que tinha ouvido falar daquelas cassetes e tinha consciência de que não era o primeiro a ouvi-las. No final da década de 80, a Lena d’Água já tinha gravado quatro daquelas canções para o Tu Aqui (1989).
[Paulo Junqueiro] Dei ao Nuno Galopim uma sala na EMI para ele ouvir as cassetes e documentar tudo o que estava dentro da caixa.
[Nuno Galopim] Tenho ideia de que levei as cassetes para casa para as documentar.
[Paulo Junqueiro] O Nuno Galopim disse que ia levar as cassetes para casa e eu disse que não, isso não ia acontecer. Disse-lhe que ele podia vir à EMI quando quisesse ouvir as cassetes e ia embora quando lhe apetecesse.
[Nuno Galopim] De qualquer maneira, ouvi as cassetes de fio a pavio e fiz um inventário detalhado de tudo o que lá estava. Transcrevi as letras das várias versões que existiam de cada música e fixei em DATs os tais ensaios. Fiz isso em muito pouco tempo porque não estava confortável a ficar muito tempo a mexer nas cassetes.
[Paulo Junqueiro] Um dia, o Nuno Galopim disse-me que já tinha ouvido tudo e que tínhamos um disco.
[David Ferreira] A dado ponto, achávamos que tínhamos de devolver as cassetes à família do António porque não estávamos a conseguir fazer nada com aquilo e era uma vergonha. Com o trabalho do Nuno Galopim, aquela caixa passou a ser material com o qual podíamos trabalhar. Estava ali qualquer coisa.
[Nuno Galopim] As cassetes eram tal e qual como as imaginava. Havia cassetes que eram os míticos ensaios de voz e palminhas do António, outras com banda, outras tinham canções que nunca tinha escutado na vida. Percebi que havia ali qualquer coisa porque estavam lá tesouros.
[Paulo Junqueiro] Em conjunto com o Nuno Galopim, escolhemos um repertório para aquilo que pensamos ser um projeto para um terceiro álbum do António Variações.
[Nuno Galopim] Lembro-me que as nossas escolhas incluíram canções que estavam quase concluídas, como a “Guerra Nuclear”, que só mais tarde seria gravada pela Marisa Liz, ou a “Gelado de Verão”. Contudo, havia canções como a “Rugas” que eram só meras vinhetas. No final do processo, devolvi as cassetes à EMI e a editora devolveu-as à família do António. Mais tarde, alguém as comprou no famoso leilão do espólio do António.
[Paulo Junqueiro] Eu e o Nuno Galopim começamos um bate-bola para ver o que íamos fazer com aquilo. Mas eu já estava ciente do que não queria fazer. Não queria fazer outra compilação ou best of porque isso já tinha sido feito.
[David Ferreira] Sempre me preocupei muito com o que fizemos ao longo dos anos para celebrar o António. Para assinalar os dez anos da morte do António, a EMI lançou uma compilação [Variações – As Canções De António (1993)], por exemplo. Nós queríamos fazer qualquer coisa com as cassetes, mas não queríamos fazer nada que fosse utilizar o nome do António e ser feito a despachar.
[Nuno Galopim] Acabei por dar a ideia para se formar uma banda para dar vida àquelas canções. A ideia era muito simples: uma banda que refletisse o que era o António Variações. Entre a pop e o fado, entre Braga e Nova Iorque. Uma banda que trabalhasse as ambiguidades femininas e masculinas que a música dele tinha.
[Paulo Junqueiro] Lembrei-me logo do nome da Manuela Azevedo, mas o Nuno Galopim sugeriu que devia ser um dueto.
[David Ferreira] Não me lembro quem sugeriu o Camané, mas alguém sugeriu o nome dele. E tanto ele como os Clã eram artistas da EMI. Fazia sentido. Lembro-me que saímos dessa conversa a querer que fosse um disco de duetos entre a Manuela e o Camané.
[Paulo Junqueiro] Entretanto, lembrei-me do Nuno Rafael, que era alguém em quem confiava muito. Ele circulava bem dentro do ambiente Clã e sabia que ele ia trazer com ele o João Cardoso e o Sérgio Nascimento.
[Sérgio Nascimento] Na altura, tocávamos juntos há dez anos, para aí.
[Nuno Galopim] O Nuno Rafael fez todo o sentido por causa do trabalho que ele tinha feito com o Sérgio Godinho. Ele tinha conseguido pegar num repertório como o do Sérgio e reinventou-o para uma linguagem pop contemporânea.
[João Cardoso] Antes dos Humanos, tinha existido a experiência bem conseguida do Lupa (2000), um disco do Sérgio Godinho onde o Hélder e o Nuno Rafael tinham trabalhado juntos. Na altura, esse disco foi recebido com pinta pela crítica e pelo público.
[Paulo Junqueiro] Chamei o Nuno Rafael para lhe mostrar as cassetes em primeira mão e ele ficou doido com aquilo. Ele foi o primeiro a ser convidado e a aceitar o convite.
[Nuno Rafael] O convite surgiu no início de 2004 quando o Paulo Junqueiro me chamou para uma reunião sobre um projeto novo. Ele explicou o que era o projeto e se bem me lembro, era suposto chamar-se Novas Variações. Nesse dia, ouvimos uns CDs com as canções e começamos a ter ideia de quem podia cantar aquelas canções. Quando ouvi o conteúdo das cassetes, senti que estava a ouvir algo muito íntimo. Não sabia se devia era suposto estar a ouvir aquilo ou não.
[Sérgio Nascimento] O Nuno Galopim entregou-nos uns cinco CDs com tudo aquilo que tinha catalogado a partir das cassetes. Lembro-me de estar a ouvir aquilo e de pensar que nem devia fazer barulho porque era algo muito íntimo.
[Paulo Junqueiro] Entretanto, fui falar com a Manuela que já sabia do convite porque o Nuno Rafael já lhe tinha contado com a excitação dele.
[Manuela Azevedo] Acho que na altura o convite surgiu quando os Clã foram a Lisboa tratar de entrevistas por causa do Rosa Carne (2004). Acho que foi no final de um dia de entrevistas que o Paulo Junqueiro nos explicou o projeto e entregou-nos os CDs para ouvirmos.
[Hélder Gonçalves] Fomos a ouvir esses CDs no regresso a casa e foi isso que nos fez aceitar o convite.
[Manuela Azevedo] Houve outra coisa que nos fez aceitar. Já sabíamos que uma das pessoas convidadas para produzir o disco era o Nuno Rafael, com quem o Hélder tinha trabalhado na produção de um disco do Sérgio Godinho. Na altura, foi um encontro muito feliz tanto a nível criativo como pessoal.
[Paulo Junqueiro] Lembro-me de o Hélder perguntar-me se podia ser o baixista da baixa e eu dizer que sim. Foi assim que ficou definido o que seria o projeto porque também já tínhamos falado com o Camané. Ao início, o manager do Camané, o Paulo Salgado, que ironicamente veio mais tarde a ser o manager dos Humanos, não queria que ele dissesse que sim. Achava que aquilo ia estragar a carreira do Camané.
[Nuno Galopim] Eu liguei à Aldina Duarte, que vivia com o Camané na altura, a perguntar-lhe se o Camané gostava do António Variações e de ela ter-me dito que ele gostava muito do António. Soube que fazia todo o sentido convidá-lo.
[David Ferreira] Lembro-me de o Camané estar indeciso se ia aceitar ou não o convite.
[Camané] O Nuno Galopim foi o primeiro a falar comigo para me convidar para fazer parte de um disco de homenagem ao António Variações com canções inéditas dele. O que me fez aceitar o projeto foi ter ouvido o que estava nas cassetes. Achei que as podia transportar para a minha forma de cantar.
[Nuno Galopim] Depois disso estar definido, afastei-me e eles prosseguiram o seu caminho. Lembro-me também de lançar o nome do David Fonseca, mas ele só apareceu mais tarde.
[David Ferreira] O David Fonseca foi uma pessoa com quem sonhamos para o projeto, mas ele era artista da Universal, não da EMI. Portanto, era mais difícil garantir que ele pudesse fazer parte do projeto. Mas aí veio ao de cima a amizade do David com a restante banda, que acabou por lhe lançar o convite.
[Hélder Gonçalves] Quando começamos a trabalhar nas canções, surgiu a ideia de termos um terceiro vocalista e achamos que o David Fonseca seria a voz ideal para isso. Não tínhamos regras para definir o que era o projeto e achamos que faria sentido assim.
[Paulo Junqueiro] O Sérgio Nascimento era o baterista do David Fonseca e foi ele que lhe falou no projeto e o David ficou excitadíssimo.
[David Fonseca] Há um dia que o Sérgio me liga às duas da manhã a convidar-me para fazer parte do projeto. Na altura, estava em gravações com a Rita Redshoes em Peniche e achei a ideia impressionante. Disse que sim sem ouvir as canções sequer – só mais tarde ouvi as cassetes. Fui a última pessoa a juntar-me ao projeto.
[Nuno Rafael] Por causa disso, o David não fez parte do processo da seleção de canções ou do processo de trabalhar nos primeiros arranjos das canções.
[Paulo Junqueiro] Tivemos de chegar a acordo com a Universal para o David Fonseca fazer parte do projeto, mas conseguimos. Ficou assim montada a banda.
No verão de 2004, os seis elementos dos Humanos deslocaram-se para a casa-estúdio dos Clã para gravar o seu único álbum. Foi durante esse período de gravações onde surgiu o nome de Humanos. O disco homónimo seria finalizado com gravações no estúdio do Mário Barreiros, localizado no Porto, em outubro de 2004. Humanos foi revelado ao mundo em dezembro de 2004 e foi um sucesso nacional. Obteve o estatuto de disco de platina.
[David Fonseca] Quando me juntei ao projeto, já as maquetes de pelo menos mais de metade do disco estavam feitas. Os culpados disso foram o Nuno Rafael e o Hélder que, com a ajuda do João e do Sérgio, estiveram na casa dos Clã a trabalhar muito intensamente nas maquetes.
[Nuno Rafael] Ao início, o Hélder e eu dividimos as canções entre nós.
[Manuela Azevedo] Foi uma decisão prática necessária fazer essa divisão. Os Clã estavam na estrada na altura e, como havia dois produtores, o Hélder e o Nuno decidiram adiantar o trabalho ao dividirem as coisas entre si. Tudo isto tinha de ser feito em tempo recorde e ainda tínhamos de arranjar disponibilidade para gravarmos.
[Hélder Gonçalves] Foi um processo muito simples porque nos dávamos muito bem um com o outro. Cada um escolheu o que lhe apetecia.
[Sérgio Nascimento] Havia um complemento muito grande entre a forma de trabalhar do Nuno Rafael e do Hélder.
[João Cardoso] Para o Rafael, o gatilho principal para agarrar uma canção é a sua base rítmica. No caso do Hélder, ele procura muito a alma da música.
[Sérgio Nascimento] Na altura, o Hélder já trabalhava de uma maneira um bocadinho mais profissional que o Rafael. Ele tinha um estúdio enquanto o Rafael tinha ainda algo mais “amador”. Ele tinha um estúdio no quarto dele.
[Nuno Rafael] Eu escolhi logo fazer a “Maria Albertina” e o Hélder fazer a “Já não sou quem era” e a “Muda de vida”. Ambos trabalhamos na “A teia” e depois juntamos para a canção ficar uniforme com o restante material. Tivemos esse cuidado.
[Camané] A “Maria Albertina” assustou-me ao início por ser uma canção que soava muito popular, mas o arranjo do Nuno Rafael ficou incrível. A EMI no início não queria a canção, mas depois de a ouvir, mudou de ideias.
[Hélder Gonçalves] Acho que para além das músicas que gravamos, ficaram umas duas ou três de fora. Uma foi a “Guerra Nuclear”. Essa não gravamos porque achamos que era uma canção datada para a altura devido à linguagem ingénua com o que António falava daquilo. Outra foi a “António”, que tentamos gravar, mas nunca chegamos a um arranjo que nos satisfizesse totalmente. Mas tocamos a “António” ao vivo depois.
[Sérgio Nascimento] A “António” foi uma situação caricata. Trabalhamos nela numa noite e aquilo estava a soar mesmo fixe, mas decidimos ir descansar sem gravar. Quando no dia a seguir voltamos a tentar repetir o que tínhamos feito, não conseguimos. E lembro-me que a “António” foi das últimas em que pegamos.
[João Cardoso] Havia uma hierarquia de prioridades para o que tinha de ser gravado e do que não. Lembro-me de estarmos bastante tempo na dúvida se íamos gravar a “Gelado de verão” ou não.
[Sérgio Nascimento] Nessa altura, só tínhamos o Camané ou a Manuela. Com a chegada do David Fonseca, abriu o leque de coisas que podíamos trabalhar.
[David Fonseca] Lembro-me que uma das primeiras canções que escolhi para cantar foi a “Na lama” porque via aquilo quase como uma cena meio punk rock. Escolhi essa e a “Gelado de verão”.
[Hélder Gonçalves] Quando estivemos a pensar nos arranjamos, pensamos imediatamente em quem iria cantar o quê. Foi também por causa disso que definir quem ia cantar o quê acabou por ocorrer naturalmente, apesar de terem existido dúvidas com uma ou outra.
[David Fonseca] Havia dúvidas se seria eu ou a Manuela a cantar uma ou outra. No caso do Camané, foi fácil, porque sempre achei que o projeto de Humanos foi feito para a voz do Camané. Mas o Camané podia cantar a lista telefónica que ia soar sempre muito bem.
[Camané] Para mim, foi um processo muito mais fácil porque, para mim, foi só cantar. O verdadeiro trabalho de fundo foi feito pela restante malta.
[Sérgio Nascimento] Acabamos por ir trabalhar para o estúdio em casa dos Clã porque o estúdio onde habitualmente gravávamos, que era do Mário Barreiros, não estava disponível durante seis ou sete meses. E nós não tínhamos esse tempo.
[João Cardoso] Lembro-me que eu, o Sérgio e o Rafael ficamos numa casa mesmo ao pé da casa do Hélder e da Manuela, que nem custou assim tanto dinheiro. Aquilo era mesmo numa aldeia.
[Nuno Rafael] Mais tarde, fomos ao estúdio do Mário Barreiros gravar as cordas para umas canções e fazer umas últimas gravações. Isso foi em outubro de 2004, acho eu. Estivemos até ao último minuto a finalizar as misturas para enviar o disco para masterizar.
[Hélder Gonçalves] Gravamos as cordas para a “Quero é viver” e para a “Gelado de verão” no estúdio do Mário Barreiros. Acho que também acabamos de gravar a “Adeus que me vou embora” lá também. Ficamos muito tempo a trabalhar nessa música porque era uma música tão forte e não a queríamos estragar. Ficou para o fim.
[Camané] Lembro-me de estar em casa da Manuela e do Hélder a ouvir as músicas e a trabalhar as vozes e de estar ali algum tempo. Depois, fomos para o estúdio do Mário Barreiros finalizar o álbum. Aconteceu tudo muito naturalmente.
[Nuno Rafael] Havia dúvidas também com algumas das canções. Por exemplo, a “Muda de vida” estávamos na dúvida se ele dizia “Muda de vida” ou “Mudar de vida”. Quando tínhamos dúvidas, falávamos com o Galopim para percebermos que ideia tinha ele sobre o assunto.
[Hélder Gonçalves] Com a “Muda de vida”, andamos às voltas com as estrofes. Depois, havia canções que estavam aos pedaços e tivemos de ver para onde iria a canção, como foi o caso da “Rugas”. Acabou por ser o único dueto do disco porque ficava bem a duas vozes.
[David Fonseca] Esse processo acabou por dar origem ao universo musical dos Humanos. Isso é algo muito difícil de definir para cada projeto, mas, para este, era particularmente difícil. Eram canções de alguém que já estava estabelecido num universo musical específico.
[Hélder Gonçalves] Tivemos de perceber, enquanto criadores e compositores, que tínhamos de fazer algo que tivesse alguma união ao ser cantado por estas várias pessoas. A partir de um dado momento, mandamos às urtigas a reverência ao António Variações e entendemos que tínhamos de criar o nosso som para conseguirmos trabalhar estas canções.
[Manuela Azevedo] Pareceu-nos ser a forma mais justa de homenagearmos o António. Para nós, foi muito importante chegarmos àquilo que achamos ser a verdade musical deste projeto.
[Nuno Rafael] Durante todo este processo, começamos a achar que estas canções podiam ser nossas e passamos a sentir muita mais liberdade para as trabalhar a partir. Mas tivemos sempre em conta que não queríamos desvirtuar aquilo que sentíamos que era uma canção do António Variações.
[João Cardoso] A identidade da banda surgiu com o tempo. Existiu essa necessidade e nós passamos grandes temporadas nesse verão todos juntos em casa da Manuela e do Hélder a trabalhar nestas canções. Eram às três semanas de cada vez.
[Paulo Junqueiro] A dado ponto, começou a fazer sentido aquilo ser uma banda. Ao início, eles não queriam ser uma banda. Mas há um dia em que vou ao Porto ver como estavam a correr as coisas e eles dizem que têm um nome. Eles eram os Humanos. Não gostei nada, mas eles deram uma explicação extrassensorial qualquer que estavam a tentar humanizar a música do António.
[Nuno Rafael] O nome Humanos surgiu porque o João estava a gravar teclados e disse que errar era humano e ficou toda a gente em silêncio. Aquilo fez sentido.
[David Fonseca] Lembro-me de falarmos do nome da banda e de haver vários nomes em cima da mesa e acabou por ficar Humanos. Em primeira instância, não gostei do nome!
[Hélder Gonçalves] Acabamos por nos sentir menos presos assim. Passamos muito tempo a pensar o que é que o António pensaria disto e do que ele ia gostar ou não. Porém, a partir do momento em que começamos a trabalhar juntos naquele material, entendemos que estava a nascer algo de novo.
[Manuela Azevedo] À medida que fomos encontrando os arranjos certos, o cantor certo para cada canção, e a perceber como tudo ia soar, começou a fazer sentido existir nome. Porque passou a existir uma personalidade sónica associada àquele conjunto de sete humanos.
[Hélder Gonçalves] Tínhamos a noção de que aquilo que estávamos a fazer não era um disco dos Clã, que o David Fonseca não estava a trabalhar num projeto dele, que o Camané não estava a cantar o seu fado. Aquilo pertencia a todos nós e decidimos arriscar. Começamos a experimentar coisas e a esticar a corda para ver o que acontecia.
[Sérgio Nascimento] Existiu a disponibilidade de praticamente não interrompermos nada e de estarmos ali a trabalhar praticamente sem parar em total liberdade.
[Camané] Achei incrível que todos tínhamos projetos pessoais que interrompemos para fazermos este disco com toda a paixão.
[Nuno Rafael] Lembro-me de ir com o Sérgio a Ermesinde comprar bombos e tambores porque queríamos algo mesmo feito artesanalmente. Fomos buscar instrumentos específicos porque queríamos uma sonoridade específica e isso só se consegue quando estás completamente disponível para algo desse género.
[David Fonseca] Acho que uma das cenas mais interessantes dos Humanos foi termos conseguido levar as canções para um lugar de vulnerabilidade.
[Hélder Gonçalves] Se era para cantar a abrir, era para cantar a abrir. Se era para chorar, era para meter as pessoas a chorar. Tentamos capturar esse lado extremado da música do António, mas tentamos fazê-lo de forma humilde.
[Nuno Rafael] Tentamos aproveitar praticamente tudo o que conseguimos das melodias que já estavam definidas nas cassetes. Tínhamos de ter a sensação de que ele diria que sim àquilo que estávamos a fazer.
[Sérgio Nascimento] Houve momentos em que gravamos, ouvimos e decidimos que íamos começar de novo porque sentíamos que ainda não estava no ponto.
[João Cardoso] Um dos momentos mais deliciosos das gravações foi quando gravamos “A teia”.
[Hélder Gonçalves] Sentimos que essa música tinha de ser a rasgar e fomos subindo o tom da canção até ficar num tom onde a Manuela tinha de cantar aos berros.
[João Cardoso] A Manuela gravou isso fechada entre duas portas, num espaço pequeníssimo, a rebentar-se toda para aquilo soar como queríamos.
[Hélder Gonçalves] Ligamos um microfone lo-fi a um amplificador de guitarra e gravamos assim. Funcionou muito bem. Isso foi um dos momentos onde tentamos levar ao extremo a sensação corporal da emoção do disco. Sentimos isso também com o Camané noutros momentos do disco.
[João Cardoso] Quando o Camané cantou pela primeira vez a “Quero é viver”, lembro-me que o meu corpo começou a vibrar todo. Nunca me tinha acontecido nada assim em estúdio e nunca mais voltou a acontecer. Foi uma coisa potentíssima. Foi incrível.
[Nuno Rafael] Apesar disso, demorou algum tempo até percebermos o que estávamos a fazer, porque ainda não tínhamos mostrado aquilo a ninguém.
[David Fonseca] Acho que, por ter sido o último a juntar-me aos Humanos, fui a primeira pessoa de fora que fiquei impressionado com o que ouvi. Até aí, eles estavam todos com muitas dúvidas.
[Nuno Rafael] E há um dia que o Paulo Junqueiro vem ao Porto ouvir as primeiras misturas.
[Paulo Junqueiro] É aí que percebo que tinha em mãos um dos melhores discos da minha carreira.
[David Ferreira] Há um dia que o Paulo Junqueiro me telefona todo excitado com o disco e diz-me que aquilo era o melhor disco da carreira dele enquanto diretor artístico.
[Paulo Junqueiro] O David Ferreira, nessa altura, não sabia muito bem o que estava a acontecer. Ele estava a par, mas não sabia os contornos que o projeto tinha tomado. E eu sabia que tinha o disco do ano nas mãos.
[David Ferreira] Lembro-me que no dia em que o Paulo me liga quando voltou do Porto. Eu estava a ir, se bem me lembro, para uma consulta no dermatologista.
[Paulo Junqueiro] Nunca me vou esquecer. O David tinha uma consulta no dentista e tinha de se despachar. E eu queria que ele ouvisse o disco naquele dia e disse-lhe que o levava ao dentista.
[David Ferreira] Quando o Paulo me mostrou o disco, acho que cheguei meia hora atrasado ao médico. Merecia todo o entusiasmo que o Paulo tinha.
[Paulo Junqueiro] Lembro-me de estar no carro a perguntar ao David para escolher um número de 1 a 12. E foi uma atrás da outra. O homem passou-se. Saltou-lhe a tampa completamente. E era que ele fazia chover, não era? E mandou chover a partir daí. Depois disso, a EMI colocou o disco como prioridade máxima.
[Nuno Rafael] Só quando a editora se quis envolver a sério é que percebemos o que tínhamos em mãos. Lembro-me de ser agosto e de não termos recebido ainda o dinheiro para pagarmos a casa que estávamos a alugar lá perto da casa do Hélder e da Manuela.
[David Ferreira] Passou a existir um problema de estratégia, contudo. Internamente na EMI, este disco tinha sido vendido como um tributo ao António Variações. É o Paulo que me conta que, entretanto, eles tinham-se dado o nome de Humanos e diziam que era uma banda.
[Paulo Junqueiro] O David não estava tanto a par das coisas porque era eu que estava a fazer o disco, não era ele. Ele dizia para termos cuidado com a obra do António, mas tinha total confiança nos músicos. Contudo, ele não estava a par que eles agora eram uma banda. Mas ele arranjou uma solução para o problema: colocar o António na capa. Foi uma ideia brilhante de marketing.
[David Ferreira] Quando se anda muito tempo nisto, aprendemos a simpatizar com a intuição e vontade dos artistas. E como ninguém sabia quem eram os Humanos, mas toda a gente sabia quem era o António Variações, tive a ideia de que os Humanos não eram sete, mas sim oito. Porque o António também fazia parte.
[Nuno Rafael] Não tínhamos expectativas nenhumas para isto. Queríamos fazer o melhor trabalho possível em termos de produção, arranjos e interpretação. Porque isto era uma encomenda para uma editora, não é? Com o tempo, deixou de ser só isso e passou também a ser uma coisa nossa.
[David Fonseca] Todos nós gostámos muito do resultado final do disco, mas nenhum de nós esperava que o disco fosse tão bem sucedido.
[Paulo Junqueiro] Mas o sucesso do disco demorou a materializar-se. Não foi o sucesso imediato que eu e o David Ferreira achávamos que ia ser quando escutamos o disco no carro dele.
[Hélder Gonçalves] Quando fazes um disco, nunca percebes muito bem como as coisas vão funcionar. Nunca entendes se o disco vai chegar às pessoas. Neste caso, correu bem e foi o momento certo para o disco sair.
[David Ferreira] O que aconteceu foi que o disco foi objetivamente boicotado pela RFM e pela Rádio Comercial. Lembro-me do entusiasmo do Luís Montez na altura, que era diretor da Antena 3, pelo disco. Mas lembro-me de ir a um almoço com representantes da RFM em que me disseram que o disco dos Humanos não correspondia ao perfil da estação. Mandamos o disco para essas rádios em outubro ou novembro de 2004, mas ele só começou a ser tocado em agosto de 2005. E foi um disco caro de promover na altura. Porque quando a rádio não alinha com algo sai mais caro levar às pessoas.
Em 2005, os Humanos juntaram-se na Baixa da Banheira para preparar aquilo que seria o espetáculo ao vivo da banda. Em julho de 2005, dão três concertos esgotados – dois no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, e um no Coliseu do Porto. Em 2006, os Humanos dariam o seu último concerto até à data, no Sudoeste, perante uma das maiores enchentes de sempre do festival organizado pela Música no Coração.
A gravação dos concertos e dos ensaios foi utilizada para o documentário Humanos – A Vida em Variações (disponível na Filmin) e o DVD e CD Humanos ao Vivo.
[Paulo Junqueiro] O Luís Montez na altura foi crucial para os concertos dos Humanos acontecerem.
[Manuela Azevedo] Chatearam-nos muito para tocarmos ao vivo!
[João Cardoso] Começou a haver alguma pressão para tocarmos ao vivo, mas ficou logo decidido que não íamos ser necrógrafos a comer a carcaça dos Humanos até ao osso. Se era para fazer, era para fazer e fechar.
[Manuela Azevedo] Lembro-me que decidimos que íamos tocar ao vivo num jantar num restaurante chinês em Belém.
[David Fonseca] Acho que durante o jantar, decidimos que não íamos tocar ao vivo. Só com a sobremesa é que retomamos o assunto e decidimos que sim. Não foi fácil fazer esses concertos acontecer.
[David Ferreira] Tínhamos noção de que, pela natureza do projeto, o número de espetáculos seria limitado.
[Nuno Galopim] A meu ver, o disco dos Humanos teve uma vida breve demais em palco para o potencial que tinha.
[David Fonseca] Na altura, tínhamos todos coisas a acontecer. Os Clã tinham um disco, eu tinha o meu segundo disco a solo, o Camané acho que também tinha um disco prestes a sair. Portanto, estávamos todos com agendas muito complicadas e ou se fazia naquele momento ou não se fazia de todo.
[Sérgio Nascimento] Lembro-me do Camané ter dito que podia congelar um bocadinho a carreira para fazer isto e ver no que dava.
[Camané] Podíamos ter aproveitado para fazer uma digressão de um ou dois anos, mas demos só quatro concertos.
[João Cardoso] Havia a noção que, se fossemos tocar ao vivo, podíamos ter um ano à Delfins ou Pedro Abrunhosa, em que seríamos os “campeões” desse ano.
[David Ferreira] Aquilo era um hiato na carreira deles. Não podia desejar mais. Não me lembro de ter sido uma angústia. Se calhar, se tivessem tocado mais, teríamos vendido ainda mais discos!
[David Fonseca] Todo o processo foi muito intenso para prepararmos os concertos. Foi de loucos.
[Manuela Azevedo] Houve a necessidade de disciplina por causa das nossas agendas e tínhamos de conseguir preparar um espetáculo que não podia ter só 12 canções.
[Hélder Gonçalves] Houve a necessidade de fazer arranjos de outro repertório.
[Nuno Rafael] Estivemos algum tempo a perceber como é que iríamos conseguir construir o concerto. Não podiam ser só as 12 canções do álbum, não é? Então, começamos a ver o que estava nas cassetes e o que ele gostava e decidimos incluir outras do repertório dele como coisas que achávamos que ele gostava. Lembro-me de incluirmos Sparks porque o Hélder achava que o riff da “…O corpo é que paga” era muito parecido a um riff de uma canção dos Sparks.
[Hélder Gonçalves] Havia algumas coincidências com canções e de certeza que o António as tinha ouvido. O espetáculo acabou por ser ainda grande, tinha quase duas horas.
[David Fonseca] Lembro-me de existir um período de pré-produção para os concertos em que, se bem me lembro, o Nuno Rafael e o Hélder dividiram os instrumentos para ver quem tocava o quê. Lembro-me de receber instrumentos em casa.
[Hélder Gonçalves] Sermos quase todos multi-instrumentistas ajudou a que conseguíssemos preparar os concertos.
[Manuela Azevedo] Foi tudo muito intenso porque tínhamos de afinar os arranjos e ver quem tocava o quê. Além disso, ainda tínhamos de receber jornalistas, pensar nos figurinos, na sonografia… era muita coisa e foi mesmo exigente.
[Nuno Rafael] O trabalho foi diário. Começamos de manhã e acabávamos à hora de jantar. Todos os dias, procurávamos soluções para as músicas e para ver o que cada um ia tocar. Tínhamos de tocar o que cada música precisava.
[Manuela Azevedo] Estivemos fechados na Baixa da Banheira a trabalhar. Tivemos sorte com o tempo. Tanto na gravação do disco como durante os ensaios para os concertos, estiveram uns dias lindos de calor. O trabalho foi duro, mas o ambiente era de colónia de férias.
[David Fonseca] Acho que nunca tive na vida ensaios tão intensos como esses. Na altura, estava com a casa em obras e tinha de dormir em casa do meu irmão. Também foi por essa altura que o meu primeiro filho nasceu e a sensação do tempo a passar estava a avassalar-nos de uma maneira brutal.
[Camané] Lembro-me que tive um acidente de carro nessa altura a sair da Ponte 25 de abril. Perdi imenso tempo, mas lá cheguei à Baixa da Banheira.
[David Fonseca] Ainda bem que demos esses concertos, porque tinha sido uma oportunidade desperdiçada se não o tivéssemos feito.
[Camané] Estivemos muito focados nesses espetáculos. O concerto no Sudoeste foi uma das maiores enchentes do festival e foi fantástico fazê-lo.
[Nuno Rafael] Foi uma boa sensação quando fomos para palco a primeira vez. As pessoas estavam sedentas e conheciam bem o disco. Nós já tínhamos tocado muitas vezes nos ensaios, mas quando o fizemos à frente do público, foi incrível.
[Paulo Junqueiro] Num dos concertos, apareceu uma rapariga a dizer que era a Vanessa. Era a filha da Maria Albertina e eu só me queria atirar para o chão a chorar.
[Manuela Azevedo] O encontro com o público foi ótimo e quando acabou, sentimos que ficou tudo resolvido. Acho que foi um processo muito natural para nós. Foi uma exceção que abrimos nas nossas vidas para fazer aquilo e foi um sonho lindo que cumprimos.
[David Fonseca] Uma coisa que adorei nos concertos, e que ainda hoje tenho saudades, foi de fazer parte de uma banda e de ter só de cantar um terço do concerto. Eu podia falhar tudo que eles iam acertar tudo. Havia essa sensação de confiança mútua em cima de palco.
[Camané] Esses concertos marcaram-me muito. Lembro-me de estar muito nervoso antes do primeiro concerto. Foi a única vez que toquei guitarra num concerto ao vivo. Toquei mal, mas toquei.
Aquando do seu lançamento, o disco dos Humanos consolidou a língua portuguesa como a linguagem dominante da pop feita em Portugal e cristalizou o legado de António Variações como uma das figuras mais importantes da cultura pop portuguesa. Em 2009, Humanos foi considerado pela Blitz como o melhor disco da década de 2000 feito em Portugal. 20 anos depois, nunca mais esquecemos o António nem aquelas canções, que ganharam vida própria.
[Nuno Galopim] O disco dos Humanos instituiu definitivamente o António Variações como um ícone de referência maior na história da música popular portuguesa.
[David Fonseca] O António Variações era um génio. Tinha canções muito à frente do seu tempo que, ao mesmo tempo, estavam enraizadas numa certa cultura popular portuguesa que não deixava de ser moderna. Duvido que alguma vez apareça alguém igual a ele.
[João Cardoso] O António tinha uma capacidade para escrever refrões que podiam estar pintados numa parede. Ele tinha essa capacidade de escrever algo definitivo e abrangente.
[David Ferreira] Fazer o disco a partir daqueles esboços foi um milagre. Na altura, até me lembro que as relações com o Dr. Jaime Ribeiro se tinham esfriado, mas quando lhe mostramos pela primeira vez o disco, ele ficou verdadeiramente emocionado com aquilo.
[Paulo Junqueiro] Foi um presente caído do céu como tudo aconteceu. 20 anos depois da sua morte, o António voltou para duas gerações a seguir e desde aí que nunca desapareceu.
[Nuno Galopim] Há que perceber que a relação dos portugueses com a música do António não foi sempre de entusiasmo. Quando o Dar & Receber dele sai [em 1984] e o António morreu pouco depois, os portugueses estavam de costas voltadas para ele e para aquelas canções.
[David Ferreira] Havia um grande preconceito com a doença dele e com a homossexualidade. Na altura, o Dar & Receber foi um disco que teve uma vida muito difícil porque não recebeu atenção praticamente nenhuma.
[David Fonseca] Se Portugal ainda hoje é conservador, imagine-se naquela altura.
[Nuno Galopim] Devemos a vários músicos o papel de não deixar a obra do António Variações cair em silêncio. Os Delfins, com a versão da “Canção de engate”, a Lena d’Água, as Amarguinhas com a sua versão do “Estou além”. Ocorreu todo um processo de reaproximação que se cristalizou definitivamente com o disco dos Humanos.
[David Ferreira] Foi uma história com um final feliz. Pode não ter havido mais 10 ou 100 espetáculos, mas toda a gente sentiu grande orgulho naquilo que fizemos.
[Nuno Rafael] Foi bom para o legado do António que tenhamos conseguido fazer estas canções. Mas foi ainda melhor para a música portuguesa ter existido este disco.
[David Ferreira] O António deixou de ser um artista com dois grandes álbuns e passou a ser um artista com três grandes álbuns. O disco dos Humanos reforçou o prestígio do António, sem dúvida.
[João Cardoso] Houve muitas bandas a seguir aos Humanos que passaram não só a cantar em português, como passaram também a explorar instrumentos como adufes ou alguns bombos específicos. Muita gente depois daí passou a replicar a bateria que o Sérgio levou para os concertos.
[Nuno Galopim] Durante a segunda metade anos 90, com a exceção de uns Clã, de uns Da Weasel ou do Pedro Abrunhosa, surgiram um conjunto de bandas que utilizavam o inglês como uma espécie de recurso estilístico para um eventual sucesso e, acredito, uma espécie de tentativa de internacionalização. Falo dos Silence 4, dos The Gift ou de uns Belle Chase Hotel. Os Humanos ajudaram a desmontar esse mito, de que não era possível ter um projeto de grande sucesso com reconhecimento crítico e impacto popular a cantar em português.
[Nuno Rafael] Não dei muito conta desse impacto, mas é possível que o disco dos Humanos tenha tido esse impacto. Se cantássemos uma canção como a “Maria Albertina” em inglês, não iria fazer sentido nenhum.
[Manuela Azevedo] Na altura, não sentimos isso. Mas com o passar dos anos e à medida que nos fomos cruzando com artistas mais jovens, eles falavam connosco da importância deste disco para eles. Não só pela relação deles com a língua portuguesa, mas também pela relação deles com instrumentos de raiz popular portuguesa.
[Hélder Gonçalves] Já tinha havido bandas, como os Sitiados ou a Quinta do Bill, que fizeram muito sucesso a explorar esse lado popular. Mas os Humanos apareceram com um som pop mais moderno e a fazer alguns cruzamentos inesperados. A malta depois perdeu a vergonha de pegar em tambores portugueses, cavaquinhos, braguesas, e juntar isso com pop, sintetizadores e baixos e guitarras elétricas.
[Manuela Azevedo] Os Humanos foram também um exemplo do que é possível de acontecer quando tens artistas vindo de lugares diferentes a encontrarem-se. Todos viemos de universos diferentes com o objetivo de trabalhar as canções de alguém que tinha feito a sua música durante a década de 80.
[Hélder Gonçalves] Acho que os Humanos deram um novo reconhecimento ao trabalho do António Variações. Lembro-me que a seguir saíram umas coletâneas e lembro-me também que é nessa altura que apareceu o João Maia a falar de querer fazer um filme sobre o Variações pela primeira vez.
[Nuno Rafael] Além de todos temos Amália na voz, temos todos também o António na nossa voz.
[Manuela Azevedo] Eu nem era assim grande fã do António Variações, mas o contacto que tive com a obra dele naquele período fez-me ver as canções dele de outra forma. Fiquei definitivamente fã dele a partir daí.
[Nuno Rafael] Os Humanos definitivamente refrescaram a memória da obra do António. Ajudou que a um público mais novo fosse ouvir as canções do António e 20 anos depois disso, continua a haver pessoas a ouvir as canções do António e dos Humanos e a querer vê-las ao vivo.
[João Cardoso] Sempre que vou de férias, algures numa bomba de gasolina, ouço pelo menos uma canção dos Humanos.
[Camané] Eu tenho filhos muito jovens, com 2 e 5 anos de idade. Quando vou à escola, os amigos deles vêm ter comigo a perguntar se não posso cantar a “Maria Albertina”.
[David Fonseca] Ainda hoje é um dos meus discos preferidos da música portuguesa.
[Camané] Continua a haver muita gente que conhece o espólio musical dos Humanos. Mesmo que não tenhamos tocado muitas vezes ao vivo, nada se perdeu.
[Hélder Gonçalves] Não somos pessoas particularmente nostálgicas, mas sabemos que nem toda a gente teve a possibilidade de ver os concertos na altura.
[Sérgio Nascimento] Quando estive a trabalhar com o Benjamim no regresso da Lena d’Água, lembro-me de ele me dizer que não tinha conseguido ver porque ainda era muito miúdo.
[David Fonseca] O assunto dos Humanos é algo que surge de vez em quando em conversas, mas todos sabemos o que isso comporta. Seria uma loucura reconstruir tudo aquilo.
[Nuno Rafael] É normal que falemos entre nós sobre isso. As pessoas abordam-nos e lançam convites.
[Hélder Gonçalves] Já tivemos muitos convites para voltar a fazer os Humanos. Recebemos sempre solicitações quando se aproxima uma data redonda.
[Manuela] Mas se algum dia voltar a acontecer, tem de ser uma coisa única e extremamente bem feita.
[Sérgio Nascimento] Tem de haver uma motivação artística forte para os Humanos voltarem a acontecer.
[João Cardoso] Se fosse pelo dinheiro, já tinha voltado a acontecer. Já apareceram propostas que pagavam bem ao pessoal. Mas nunca foi esse o gatilho.
[David Fonseca] Tinha de ser algo que, tal como aconteceu com o projeto na altura, tinha de acontecer naturalmente.
[Hélder Gonçalves] Sabemos que se nos juntássemos, teríamos sucesso. Mas nunca foi isso que nos estimulou. Se algum dia os Humanos regressarem, será porque houve um estímulo para isso.
[Camané] Depende das disponibilidades de todos e quem nos contrata para fazer isso, mas terá de ser um momento único que funcione. Há que encontrar o momento certo para isso.
[Manuela Azevedo] Todos somos músicos com carreiras e é complicado arranjar disponibilidade de todos.
[Camané] Há um lado mágico com os Humanos que é muito complicado de replicar. Temos de garantir que isso não se perde se algum dia decidirmos ir para palco voltarmos a fazer os Humanos. Se calhar pode acontecer quando fomos todos velhinhos.
[Manuela Azevedo] Há muita documentação do que aconteceu. Isso também ajuda com alguma paz de espírito porque, para quem não viu, pode espreitar através desses registos a festa que aquilo foi.
[David Ferreira] Claro que adorava que os Humanos voltassem para um espetáculo. Gostava muito.
[João Cardoso] A esta distância, claro que gostava de voltar a ter a experiência de tocar com aquela malta toda ao vivo num palco outra vez. Não gostava de dar os Humanos como um capítulo encerrado.
[Sérgio Nascimento] Toda a gente guarda um carinho gigante pelo que vivemos nesses concertos. Sabemos que se um dia nos voltarmos a juntar, vai ser incrível.
[Hélder Gonçalves] Se algum dia voltar a acontecer, acho que tínhamos de reinventar qualquer coisa. Já se passaram 20 anos, somos outras pessoas, temos outras experiências, mas acho muito complicado repetir aquele momento especial.
[David Fonseca] Se ainda não aconteceu, é porque não teve de acontecer. Estamos todos a pensar noutras coisas. Mas nunca se sabe. Não sou contra os Humanos regressarem um dia.
[Manuela Azevedo] Tem de ser especial. Não se pode fazer só por fazer.