Opinião. Um gato na minha sombra
Nada me incomoda mais do que gente que não sabe estar nem viver em comunidade. Afirmo-me reacionário com dois cês e repudio qualquer atitude que não esteja em harmonia e perfeita conformidade com aquelas que são apenas e só destinadas ao ser humano. O mais caricato deste meu desabafo é a queixa que dele resulta: a mesquinhez, a tacanhice e a prepotência da sociedade aliam-se e gritam, em uníssono, que estar vivo aleija. E, perante estas más línguas e as vozes defraudadas da razão, mais vale entrar num bar acompanhado da doença, do sofrimento e da morte.
Quando a televisão sintoniza a elite política, a minha opinião sobre a mixórdia de temáticas já se emudece, com medo de ser engolida pelo vácuo das resoluções que são prometidas e facilmente colocadas das meias rotas. Contudo, desde o momento em que a perceção e o interesse pelos assuntos públicos esbarraram um no outro, observei que existia sempre uma boca do inferno pronta para confecionar a melhor receita de crítica ao poder dos poderes da forma mais original e arguta possível, em lume brando, remexendo-a vezes sem conta com a ajuda do tridente afiado.
Ricardo Araújo Pereira fica preso na retina de qualquer jovem que pretenda beber do comentário de um governo sombra que foca o olho de lince na atualidade e que articula as crónicas que redige com uma dosagem q.b. de humor refinado, inteligência artificial e uma postura que tem tanto de séria como a justiça portuguesa tem de célere e a CMTV tem de jornalismo não sensacionalista. A Magnum opus de um pós-Herman, a encabeçar toda uma juventude que, de uma maneira ou de outra, tenta implementar a linhagem do non-sense, pintando-a nos seus próprios tons. A fórmula que agrega a sátira, chatice do quotidiano e inúmeras emissões vistas do Canal Parlamento e que frutifica um efeito “cultural” neste pequeno retângulo em que vivemos.
Em mim, produziu mais do que cultura. Tudo começou na época natalícia e, volvidos dois anos, agradeço aos meus pais pelo ato. Só não agradeço a Deus porque, tal como ele, não senti o chamamento, sem me orgulhar disso. O manuscrito mais recente foi-me oferecido por eles na véspera e devorado no dia 25, mesclando o sabor com um longo café e com os doces da época.
O livro embeveceu-me. As situações descritas pareciam sair da sua voz aquando do momento de leitura. O riso era incontrolável face à maneira sagaz e repleta de sarcasmo com que narrou cada passagem. Três horas foram suficientes para perceber a relíquia que em 1974, coincidência das coincidências, tinha sido dada à luz. As crónicas e pesquisas futuras demonstraram-me maneiras eficazes de esmiuçar os sufrágios e de contornar as palas que deturpam a perceção da realidade que nos circunscreve. E com isto não quero afirmar que Ricardo Araújo Pereira não defende as suas cores ou vinca a sua posição política, até porque essas duas facetas são conhecidas publicamente. Contudo, algo mais importante: ali, nos recantos do meu quarto, decidi que queria escrever, independentemente da matéria que fosse. Queria escrever e ponto final!
Personificou-se num gato e, apesar de ser um animal que não me é afetivo, perdoo-lhe por isso. Este é perfumando, cheiroso e não fedorento. A perspicácia de alguém que se soube desfazer de uma bola de novelo antiga e que pensou e agiu sempre fora da box.
Melhor do que falecer, é continuar a escutá-lo e a lê-lo.