77

por Leonardo Cruz,    11 Setembro, 2022
77

“Quando dei por mim, tinha 5 homens nus à minha frente, totalmente suados, demonstrando uma energia que parecia vir de outro planeta. E eu, teenager inconsciente, rapaz heterossexual (naquela altura, para meu infortúnio, mais no plano teórico que no prático) estava a adorar.”

Decorria o ano de 1975, Portugal havia saído há 11 meses de uma ditadura de 40 anos. O tempo do Peace & Love & Mais Enxadas começava a desvanecer-se nas cinzas de um país que ardia em conflitos ideológicos. Os Genesis, uma das maiores bandas do momento, deram o primeiro grande concerto pop/rock pós-25 de Abril em terras lusitanas, no Dramático de Cascais, sobre o qual já muito foi escrito e documentado. No dia seguinte ao evento, segundo o jornalista António Duarte, o Diário de Lisboa teve o desplante de, “sobre uma foto de Peter Gabriel num fato de monstro radioativo”, publicar na primeira página o seguinte cabeçalho: “ROCK E DROGA EM CASCAIS”. O título é curioso a vários níveis. Por um lado, demonstra o atraso do país à época e como aquele evento foi um fenómeno quase alienígena (poderia ser um lamento do próprio Salazar, se fosse vivo); por outro, é uma frase meio redundante (Rock e Droga são como irmãos siameses), meio paradoxal (em Cascais, e não na Curraleira, por exemplo), o que considero divertido. Como é óbvio, só quem lá esteve sabe o que significou aquele espetáculo. Eu apenas suponho, sendo que hoje entendo quão ávidos podemos ficar por um concerto após 2 anos de pandemia; imaginem depois de 4 décadas de fascismo. 

Acerca de notícias de jornal e concertos épicos lembrei-me de um a que assisti no Bar Ben — referência absoluta da mitologia nacional de antros do rock, já mencionado aqui. Estávamos no ano de 1997, segundo me lembro Portugal estaria, porventura, ou a sair de uma, ou a enfrentar uma, ou prestes a entrar numa crise. Quando cheguei ao bar, reparei que ia haver “música ao vivo”. Boa novidade, porém nada digno de admiração — era assim quase todos os fins-de-semana: havia bandas a tocar, sobre as quais não sabíamos nada. A diferença, nessa noite, era que a parede em frente do balcão estava coberta de páginas de jornal sobre uns tais de “77” — diziam algo do género: “O PUNK DE COIMBRA NO SEU MELHOR”. As imagens que acompanhavam a reportagem, em fotocópias a preto e branco, mostravam apenas vultos da banda, entre saltos rock ‘n’ roll e sombras de penteados rockabilly. Era grande a excitação no Ben. Estamos a falar de tempos pré-internet: aqueles recortes eram toda a informação de que dispúnhamos.

A banda “subiu” ao palco e começou de imediato a tocar, enquanto um tipo que parecia mais velho que os demais, de casaco de peles e óculos escuros, apelava à acalmia do público que, até àquela hora, se encontrava (como diria Pinheiro de Azevedo meses depois da visita dos Genesis a Cascais) “sereno”. Recordo-me de questionar se o tipo vestido de vison tigresse seria segurança da banda ou algo assim e, por isso, ter sentido alguma (como se diz no mundo do punk rock) miaúfa. Era, afinal, o vocalista. Dez segundos de riffs poderosos que rasgaram por completo a atmosfera do bar-maior-que-a-cidade depois, já toda a gente saltava e dançava como se ali residisse o clube de fãs n.º 1 daquele grupo. Os refrães das músicas eram de imediato repetidos pelo público, por impactantes, simples e, alguns deles, pela inegável comicidade. Em pouco tempo o auditório decorava autênticos hinos punk revestidos de frases de fácil identificação por qualquer pessoa casada há mais de duas semanas como “I don’t wanna talk about your day”; lemas de apoio ao proletariado com problemas de solidão (ou vice-versa) — “i’m so lonely, I still work in a factory”, ou ainda nostálgicos chavões que podiam ou não ser apologéticos da prática feng shui: “Happy days, happy house” (mas isto talvez seja eu a pensar demasiado). A força daqueles rapazes, a saber, Kaló na bateria, Chau no Baixo, André Ribeiro e Victor Torpedo nas guitarras, e Paulo Eno na voz, não era menos que avassaladora. Quase todos Filhos do Tédio, à segunda música já nenhum dos músicos ostentava no corpo qualquer peça de roupa. Quando dei por mim, tinha 5 homens nus à minha frente, totalmente suados, demonstrando uma energia que parecia vir de outro planeta. E eu, teenager inconsciente, rapaz heterossexual (naquela altura, para meu infortúnio, mais no plano teórico que no prático) estava a adorar.

Entre músicas, Eno fazia questão que ninguém olvidasse o nome da banda (“seventy seeeeevvvvveeeeeennnn!!”) e dissertava furiosamente sobre os problemas do mundo (alguns, do mundo dele). Brindava-nos com mensagens anti-imperialismo americano gritando “Fuck Pinochet!” e “Viva Allende!”, enquanto alertava a audiência para a ameaça que assolava a sociedade como um todo e também em específico: os “pseudo-rockers” — tipos que se passam por roqueiros, mas que, no fundo, são uns posers, meninos da mamã e mais não sei o quê.

Se o concerto dos Sex Pistols de 4/6/76, em Manchester, é considerado um dos mais importantes da história do rock (por ter originado bandas como Joy Division, The Smiths, etc. — informação que já aqui foi maltratada), este concerto dos 77 no Bar Ben talvez não tenha tido menos importância. Foi na sua sequência, e ainda assolado por aquele furacão vindo da Lusa Atenas, que decidi, com uns amigos, formar uma banda — os “Pseudorockers”. Com o dom para tocar guitarra com que fui dotado à nascença, a que acrescia a capacidade de trabalho e dedicação que fui ganhando ao longo da vida, de imediato me voluntariei para letrista (também acabei por ter que cantar, mais por falta de alternativa).

Fiz uma letra à pressa, inspirada nos Dead Kennedys, nos Pistols e, claro, na minha nova banda punk preferida, os 77. Versava sobre um tipo rico que, por sua própria iniciativa, abdicaria dos seus luxos para viver uma vida comunitária e socialista — uma espécie de Four Yorkshiremen dos Monty Python, mas ao contrário.

Não mais engraçada do que frustrante é a forma como o meu cérebro grava tão bem o que não tem interesse algum — eis o “poema”, citado de memória um quarto de século depois:

Verso:
I’m tired of being rich
Sick of swimming in my pools
I’ll have to leave the beach
To start working with some tools

Refrão: 
Communism, communism
A cup of soup and a piece of bread
Communism, communism,
Put this idea into your head

Tivemos uma única atuação, na quinta dos pais do baixista. Bebidas foram bebidas, o baterista foi perseguido por um ganso.

No dia seguinte, tive a sensação de viajar numa cápsula de ressaca quando percorri todas as bancas: em nenhum dos jornais havia qualquer referência. O início e o fim da minha carreira de punk rocker não fora noticiado. E a culpa é desses pseudo-jornalistas que em vez de fazerem o seu trabalho, andam para aí ao serviço do grande capital imperialista americano que matou Salvador Allende… Viva Allende! Fuck Pinochet! Onde estará aquele casaco de peles da minha mãe?

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