Compra o jornal

por Leonardo Cruz,    31 Julho, 2022
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Mesmo alguém agnóstico tem as suas religiões. Acredita piamente que algumas das suas ideias, gostos ou hábitos fazem a diferença, para si ou para os outros. Crê que o bem, enquanto conceito subjetivo e magnânimo, está do lado daquilo em que acredita. Seja essa “crença” a sua ideologia política, o seu clube de futebol ou o seu gosto musical, por exemplo. Diversos ateus a tudo o que diz respeito a uma religião estão certos que o “lado certo” da história é sempre o daqueles que, por alguma razão do destino, escolheram o seu lado, divino.

Vários filósofos se pronunciaram sobre o tema, porventura o mais famoso de todos seja Joaquim Oliveira, Filósofo de Cavez para quem a palavra “Deus” (ou mesmo “Pai Natal”) não tinha outro sinónimo que “Pinto da Costa”. A teoria de Oliveira, para quem “banheiras se encontram no Estádio da Luz” (frase que, ao invés de acrescentar ao ponto pretendido, demonstra de forma inequívoca e até cagarola, que o autor da crónica conhece bem a sua obra), dizia, a teoria de Joaquim Oliveira bebeu decerto do livro “O Anticristo” de um tal de Nietzsche, autor alemão menos conhecido certamente que Oliveira nos campos de futebol do município de Cabeceiras de Basto. Município esse onde Joaquim de Cavez foi visto a beber de várias fontes.

Chegamos assim a este ponto do texto com suficiente palha nos dois primeiros parágrafos para poder ir direto ao assunto sem receio que o mesmo se esvazie em poucas linhas, o que tornaria a crónica demasiado curta.

Vamos a isso.

Mesmo uma pessoa agnóstica tem as suas religiões. Se por algum acaso do destino (que já aqui mais ou menos contei), me tornei um fiel da religião do rock, o Bar Ben foi o meu principal templo. 

É dele que vos quero falar. 

É curioso que começo por falar de filosofia para chegar ao Ben. Frequentei-o precisamente na altura em que essa disciplina me foi apresentada na escola, meados dos anos 90, sweet little sixteen ou por aí. Em termos arquitetónicos não podia ser um local mais perfeito para um lugar do rock. A porta de entrada dava para uma escada que nos fazia descer para um túnel de pedra — uma espécie de rabbit hole de Lewis Carrol, mas a Alice deste “país das maravilhas” seria sempre uma Alice in Chains. A curta galeria parecia uma miniatura da passagem por onde os atletas entravam no Estádio Panatenaico, em Atenas. Se nesse estádio o lema era “mais rápido, mais alto, mais forte”, no Ben o lema era parecido, mas em relação ao tom da música ou à quantidade de álcool ingerida. Voltemos a esse túnel. Assim que aí chegávamos já se sentia no estômago um pequeno frisson. Era o peso do som que vinha do outro lado, abafado por colunas ou gravações de música “a la anos 90”. Uma vez atravessado (3 ou 4 passos) alcançava-se a zona do balcão e das mesas — umas bancadas laterais onde se poderia observar a pista de dança, que ficava logo a seguir ao balcão e que servia também de palco para concertos. Apesar de ser uma espécie de cave, do lado direito do bar, havia janelas para o Rio Alcoa: a vista era tão boa como o rio, naquela altura, mas ninguém espera uma paisagem paradisíaca num antro de rock chunga dos nineties. Melhor que a arquitetura era o espírito. Se noutros locais, as pessoas iam para “ver e ser vistas”, no Ben isso era escusado. Até porque muitas delas já nem viam bem quando lá chegavam. Ali o que as pessoas queriam ver era, como diria Freitas Lobo, Rock em estado puro: guedelhas oleosas em voos picados, encontrões e empurrões, e aquele cheiro a teen spirit que exalava daqueles dias.

Se o rock é uma das minhas religiões e o Ben é um dos meus templos, posso muito bem ser acusado de estar aqui com conversa de evangelização. Tenho a visão toldada pelas memórias, pelo solipsismo, pela ideia clássica que “no meu tempo é que era bom”. Mas isso interessa-me menos do que as saudades de ali ver concertos quase todos os fins-de-semana (às sextas e aos sábados) de bandas que ninguém conhecia e ninguém poderia conhecer. Ah, o meu reino pela nostálgica ignorância da era pré-internet. 

Talvez até a maior parte dos grupos não fosse grande espingarda, agora que penso nisso, mas aquela paixão de querer fazer música, a excitação de almejar descobrir a next big thing do Oeste ou da Margem Sul, ou, simplesmente, beber uns copos enquanto se via uma banda de originais, todos os fins-de-semana, isso superava tudo. E parece agora demasiado longínquo.

Sabem que mais? Que se foda a saudade: é a antítese do que era o Ben.

Choose Life

Até o mais carrancudo dos acólitos, ao fim de um certo número de missas frequentadas, terá para contar uma ou outra história mais ou menos engraçada. Numa das minhas primeiras sessões de culto no Ben, em 1995 ou 1996, recordo-me de um concerto de uma banda que cantava em português, cujo vocalista tentava imitar trejeitos de rockstar, muito próprios da época, tipo o “movimento da serpente”: uma espécie de Axl Rose das Caldas da Rainha. No fim de uma das suas músicas, o tempo de voltar a afinar as guitarras (presumindo que alguma vez estiveram afinadas) demorou mais do que o previsto, pelo que o vocalista teve que improvisar uma piada qualquer. O típico público dos anos 90, no Ben, provavelmente alcoolizado, não perdoou a demora e, pelos vistos, pouco apreciou a graçola. Começaram a ouvir-se alguns dos impropérios habituais, tais como “cala-te e toca” ou “dá-lhe”, e outros mais idiotas, que insinuavam a orientação sexual do cantor. Este, impávido, mas pouco sereno, chegou-se ao microfone e ripostou com um incisivo e enigmático:

— Compra o jornal!

Fez-se silêncio, pela primeira vez naquela noite, naquele local. A quietude momentânea era eloquente da dúvida que pairava na sala. “Compra o jornal” seria o melhor ou o pior insulto da história do rock ‘n’roll? Seria aquela banda conhecida a ponto de ter saído na imprensa e, assim, seria maior que aquele público, composto de ignorantes jovens alcobacenses? Poderia aquele imperativo significar a leitura de uma qualquer reportagem jornalística onde o vocalista aparecesse como o “desconhecido namorado” de uma Cindy Crawford, o que seria a melhor das respostas à “acusação”, por parte do público, de que era homossexual (not that there’s anything wrong with that)? Ou seria apenas sinónimo de “estudasses”, outro termo muito em voga nessa época?

A guitarra começou a tocar sem que a questão fosse esclarecida. Uma linha de baixo preparou a entrada um pouco atabalhoada da bateria e aí estava o vocalista com a sua ginga meio forçada, contudo alheia a qualquer polémica.

Foi apenas no refrão que se resolveu o mistério: Compra o Jornal era o nome do próximo tema.

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