99.9 Fº

por Romão Rodrigues,    22 Junho, 2020
99.9 Fº
Fotografia de George Holz
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De forma completamente gratuita e sem a súplica desse lado, registo e grafo uma frase que li algures: o constante movimento e o almejo do cenário de mudança — caso se faça acompanhar de um lápis e de um bloco de notas aquando do momento de leitura, anote imediatamente — traçam-se através de murmúrios urgentes. O esforço em retirá-la e apagá-la do meu cérebro é, para já, infrutífero. Talvez por se tratar de uma metáfora e eu me deixar levar pela fantasia de um dos recursos expressivos mais acarinhados. Ou, talvez por ser o autor e incrustá-la num parágrafo que ainda não descortinou a temática de mais um canto aos sete ventos. Recostado no sofá de casa, invadiu-me o campo do devaneio momentâneo: exercitei e prostrei-me diante de uma senhora esguia, esbelta, aparentemente tímida, com olhar terno e lancinante, mas decidido e firme, de braços dados com uma viola acústica que conferia a sensação de extensão corporal; naquele cenário, enquanto o vento dividia e rasgava a vegetação existente e a tempestade rugia sob a forma de
lampejos e chuva intensa, a sua voz ripostava e enxergava-se da tranquilidade, da candura e da não histeria. A musicalidade das palavras adentrou-se pelo vendaval. Era Suzanne Vega.

A biblioteca de casa foi bisbilhotada, o canto que ocupava “Murmúrios Urgentes” era o menos subjugado à volatilidade do pó e, por essa razão, ressaltou ao campo de visão. Fátima Castro Silva introduziu, traduziu e presenteou os leitores com brinde no término do livro. Por sua vez, a cantora norte-americana disponibilizou poemas, segregados desde a sua infância até aos quatro primeiros álbuns produzidos (Suzanne Vega, Solitude Standing, Days of Open Hand e 99.9 Fº), e algumas crónicas soltas. Uma leitura desenfreada, absorta e destinada a contrariar os hábitos, rotinas e o tempo pelo qual cada um se rege.

Até às derradeiras 45 páginas, o leitor não constitui mais do que um autómato capaz de ler inúmeros poemas e de um comum que se limita a orquestrar especulações sobre cada palavra de cada verso e, assim, direcioná-las para as extensas e variadas temáticas/problemáticas que circunscrevem o mundo, as distintas sociedades que nele habitam e as culturas que cada uma delas desdobra. A conversa no interior do Bell Cafe (Manhattan, Nova Iorque) representa a verdadeira essência da consumação do livro e a chave que destranca as portas do desconhecimento, da incompreensão e de uma crítica que atravessou o percurso simpatia-antipatia a toda a velocidade.

Suzanne foi impingida ao crescimento voraz e à convivência com a violência desde tenra idade, facto comprovado pela existência de uma comunidade portoriquenha no local de residência (cruzamento da First Avenue com Lenox Avenue). A tarefa de suporte e busílis emocional não foi desempenhada pelos seus pais — mãe biológica e padrasto — e, desde cedo, pairou sobre si o fantasma da solidão e do sofrimento. Inerente e entranhado esteve o desejo de independência, de calcorrear o mundo de lés a lés, a composição e a rima. Os nove anos de idade sinalizam o primeiro poema e os catorze a primeira canção.

Ora, os dois primeiros álbuns — Suzanne Vega e Solitude Standing — no estado mais bruto, correspondem à efígie genuína do exterior e da sua força interior hábil para ombrear o estado depressivo e o crepúsculo que pretende esbater a aurora que teima em não florescer: no fundo, as personagens que pisam o palco das suas canções são, simultaneamente, o cárcere e a libertação de si mesmas, pelejando por ideais e por convicções que lhes serviram de armadilha. Os protagonistas tendem a confundir-se com a vasta lista de lamúrias, os pobres coitados e as pessoas com fraqueza de espírito quando, no seu verdadeiro propósito, são mastros da temeridade. Montou-se o espetáculo folk com vigas encobertas de country, a fim de combater a vaga new wave, mesmo correndo o risco de levantar o véu da cena instigada por Bob Dylan e, daí, resultar apenas fumo.

1988 foi o ano em que Suzanne conheceu o outro caule originário do seu fruto: o pai biológico. Days of Open Hand, motivado pelo reencontro algo tenso e inquietante, inicia o rastilho da introspeção e da pessoalização da obra e acende o interruptor das quimeras que ocupam o subconsciente de Suzanne. Cada uma das canções que reside no álbum está apetrechada com a dose respetiva de intimismo, da procura pelo significado das circunstâncias e dos acontecimentos e da espiritualidade que brota do poço fundo e interno. Por sua vez, 99.9 Fº regressa — em parte — às origens onde perpetra imagens, registos e momentos que salvaguardou sem razão aparente e elege o amor como artefacto elementar; a partir dele, denota-se a primazia dada à corporização de sentimentos/emoções e à sua posterior expressão poética, o tato e o toque a discorrer sob a forma de versos: o álbum que instaura na índole do ouvinte o gostar de sentir, de mexer e de acariciar.

Por fim, uma nota breve em jeito opinativo: na vida, prefiram os murmúrios urgentes aos brados que podem esperar ou — até — nem serem ditos.

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