Doclisboa’16: Oleg Karavajchuk é o Dalí do piano

por Gabriel Margarido Pais,    21 Outubro, 2016
Doclisboa’16: Oleg Karavajchuk é o Dalí do piano

Marcámos presença na sessão oficial de abertura da edição de 2016 do Doclisboa, aquele que se afigura como talvez o festival cinematográfico de maior renome em Portugal. Foi numa Culturgest lotada, com direito a champanhe, petiscos gourmet e convívio que se cortou a fita e se mostrou Oleg and the Rare Arts, um filme de produção espanhola sobre o pianista e compositor russo Oleg Karavajchuk. Foi uma escolha um tanto quanto peculiar, abrir o festival com um documentário sobre um personagem virtualmente desconhecido nos dias que correm (principalmente tendo em conta as produções de renome mundial que serão mostradas durante o festival), mas foi uma aposta acertada, e que deixou tudo e todos boquiabertos.

Numa breve apresentação ao festival por parte de representantes dos vários órgãos que possibilitaram esta edição do Doc, foi referido que este não é um festival para se tentar ver todos os filmes. A organização presenteou-nos com mais de 250 produções, mas, como foi referido na apresentação, este também é um festival onde são sugeridos caminhos e abordagens, seja através das várias competições do festival ou das temáticas do mesmo, onde, ultimamente, cada pessoa define o seu próprio caminho e experiência à sua maneira o que o festival tem para lhe oferecer. Após isso, Oleg.

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Oleg Nikolaevitch Karavajchuk é um ícone na Rússia, mas relativamente desconhecido no estrangeiro. Homem de personalidade forte, foi banido de apresentar a sua música em público durante a era soviética e dedicou-se em vez disso a uma carreira como compositor de bandas sonoras para realizadores como Sergei Parajanov, Vasily Shukshin e Kira Muratova. Este não é, no entanto, um documentário clássico sobre o percurso, vida e carreira de um pianista virtuoso. Este é um documentário único, irreverente e diferente, muito à semelhança do homem que retrata.

Ao contrário do típico filme documental biográfico, que relembra a vida do seu objeto de estudo, este foca-se no presente e no mais íntimo do personagem. É de estranhar um documentário (ou qualquer filme, de facto) com apenas um personagem, mas em Oleg and the Rare Arts, Oleg Karavajchuk é a única figura humana em cena durante todo o filme, e a sua voz sábia e afeminada é também a única que ouvimos durante todos os 66 minutos do mesmo (66 minutos que deixam água na boca). Oleg foi acompanhado por uma equipa de produção, e tudo o que é passado chega ao público como um conto, declamado pelo próprio Oleg, enquanto é filmado no piano e em caminhos remotos à sua vida passada.

Também em termos visuais, este é um filme bastante apelativo. Ora as cenas têm imensa luz, quase sobreexpostas, com uma palete gigante de cores, ora a produção se inspira nas parecenças entre os nomes e filma Karavajchuk numa luz que nos remete ao tenebrismo de Caravaggio. Ora temos detalhes muito íntimos, ou planos gerais extremamente bem construídos. Tudo neste filme, em termos visuais, superou qualquer tipo de expectativas.

O que ao início podia parecer ao público um idoso com problemas psiquiátricos e deficites de atenção, um personagem cómico com um quê de frágil, rapidamente se tornou numa figura possante, admirada pelo público que na sua maioria nunca tinha ouvido falar do músico. Foi até notório o momento em que a opinião do público se alterou. Após uma performance de piano comprida filmada em contra luz, as risotas ouvidas em forma de reação à maneira peculiar de falar e de se movimentar de Oleg transformaram-se num silêncio respeitoso, e o borburinho dos comentários menos abonatórios quanto à sua parecença física rapidamente se extinguiram, dando lugar a olhares de espanto, admiração e emoção: estávamos perante um génio.

Oleg Karavajchuk é de facto um génio louco. Mas um daqueles que sabe o que faz, e que o faz com amor, carinho e respeito pela arte que o próprio produz. É uma espécie de Salvador Dalí na sua arte. Conforme Dalí dizia ser o melhor pintor da sua geração, Oleg diz ser um génio, conforme Dalí aliava uma qualidade técnica quase inalcançável na pintura a óleo a temáticas deslumbrantes que desafiavam tudo o que interpretamos como belas artes, Oleg mistura o seu vasto conhecimento do piano clássico (notável em algumas das suas passagens, que muito têm em comum com as de Mozart, Tchaikovski e Chopin) a uma execução inovadora, repleta de força e em momentos mesmo assustadora. Oleg arrasta os dedos pelas teclas com a maior das sensibilidades com o mesmo brilhantismo como cerra o seu punho e esmurra as notas mais graves do piano, sempre com sentido e coerência. O que até então nunca tinha sido visto num pianista tornou-se para este público uma necessidade: precisávamos de ver mais murros ao piano, mais repetições inpensáveis de notas e passagens, mais originalidade. Oleg diz que não faz música, mas sim que a música se apodera das suas mãos e toca-se sozinha. Poderá ser verdade, visto que não houve no filme uma única vez em que o músico olhasse para as teclas que tanto acariciava como abusava. O seu olhar, distante e que tinha em si todas as composições algum dia ouvidas, focava-se em coisa nenhuma, e o seu corpo, ora direito como uma estaca ora contracurvado como o de uma cobra, parecia sentir cada nota como uma cócega no seu interior (por vezes, um soco).

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Não foi só de música que se fez o filme. A mente sempre vagueante de Oleg desenrolava a sua língua em conversa que terá dado certamente material suficiente para fazer vários filmes. O compositor contou-nos, entre outras coisas, sobre como foi viver numa rua restrita a artistas (entre eles Sergei Parajanov, Andrei Tarkovski e Natalia Makarova), com casas que a eles lhe foram oferecidas por Stalin, o quão mau se sentiu por ter recusado o pedido da rainha de Espanha, que quis ouvi-lo tocar (Oleg recusou pois o piano presente na sala não chamou por ele) e como se sente emocionado ao ver as filhas do rei Filipe II.

Oleg Karavajchuk afirma que a música se apodera dele. Nesta sessão de abertura do Doclisboa 2016, foi Oleg que se apoderou nós e quem nos espantou, desarmou. O Grande Auditório da Culturgest tem 612 lugares, e vendo os sorrisos nas caras das pessoas ao saírem do filme, só podemos dizer com certeza que Oleg Karavajchuk ganhou naqueles 66 minutos, 612 novos fãs, do coração. Foi certamente o crowd pleaser necessário (com tremenda qualidade) para arrancar a edição deste ano do Doclisboa.

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