Black Mirror – O III Acto chegou à Netflix
Black Mirror é uma daquelas aves raras, que apareceu do nada na densa floresta das séries televisivas, e começou por ser uma curiosidade, quase aberração, avistada apenas por viciados, ávidos de emoções novas e armados com os binóculos certos (ou o site de partilha de ficheiros mais generoso).
Para quem a descobre (ou descobriu em 2011, quando estreou), num ápice passa a segredo, daqueles que aceitamos partilhar apenas com uns poucos criteriosamente seleccionados, tarefa hoje quase obsoleta, no que respeita a cultura e ficção televisiva.
Com a nova temporada, o segredo tornou-se finalmente certeza e uma das séries indispensáveis de 2016.
Como sempre, nos EUA (e em todo o Mundo, não sejamos inocentes) o lucro fala mais alto e o caminho mais seguido pelas produtoras tem passado por este entroncamento de três opções:
a) adaptações de séries ou filmes estrangeiros de sucesso ou de culto (suecos, australianos, britânicos e até brasileiros!?);
b) recuperação de personagens televisivas esquecidas, mas que há uma ou mais gerações atrás, quando a TV era rainha e senhora do entretenimento caseiro, à hora certa colavam ao ecrã milhares de narizes expectantes. MacGyver é o último e trágico exemplo. (Aos domingos à tarde, pelas 19h, era o meu nariz que estava no sítio do costume. Hoje chamo-lhe, carinhosamente, a minha missa infantil das 7.);
c) o infinito e já penoso filão de filmes e séries com protagonistas super-heróis, da Marvel e da DC Comics, que me escuso a enumerar, por prescrição médica, para evitar catatonia e o risco de derrame cerebral, não necessariamente por esta ordem.
Black Mirror, na sua reencarnação Netflix 2016, cai na alínea a).
O título é uma alusão aos ecrãs que, cada vez mais, condicionam as nossas existências, roubando tempo e atenção a outras actividades essenciais.
Uma das grandes inspirações do britânico foi a mítica Twilight Zone, uma pedrada no charco do panorama televisivo e cultural americano do final da década de 1950, adicionando-lhe inéditos níveis de subtileza, progresso e inteligência.
“Quando começámos a pensar nesta série, The Twilight Zone era a nossa referência. Na altura, as pessoas estavam preocupadas com o McCartismo, as viagens espaciais e a psicoterapia. Hoje a obsessão prevalecente é a tecnologia. É omnipresente, ao que parece. É muito estranho como hoje somos uma espécie que aplaude um rectângulo. (…) Podemos usar esse rectângulo para filmar os nossos genitais e podemos pôr esse filme na nuvem, e quando dás por ela…Confiamos neles para armazenar coisas em segurança numa nuvem.” (Charlie Brooker, The Telegraph, Dezembro 2014)
Charlie Brooker é o cérebro por detrás desta máquina de ficção assustadoramente verosímil, sempre situada no presente ou num futuro próximo. Depois de duas séries de três (inesquecíveis) episódios e um episódio especial de Natal, com a bênção da BBC4, a gigante multinacional Netflix contratou os seus préstimos, concedendo-lhe novos meios (leia-se $$$$) para dar largas à sua imaginação.
A terceira série tem o dobro dos episódios das anteriores (seis), pelo que houve uma maior preocupação em diversificar as temáticas.
Desde a sua estreia, a regra que perpassa Black Mirror e escapa incólume nesta terceira temporada, é a aparente ausência de regras rígidas, para além do facto de cada episódio ser independente dos restantes. Esse tranquilizador vazio estende-se ao argumento, à cinematografia e a qualquer expectativa instalada no nosso cérebro, depois de décadas de previsibilidade televisiva e cinematográfica.
Tudo é literalmente possível em cada novo episódio, pelo que as únicas certezas são a forte possibilidade de seremos surpreendidos e a impossibilidade de sermos tomados por imbecis, com explicações desnecessárias ou mudanças descontextualizadas e radicais no enredo.
“Tentamos limitar-nos às regras que estabelecemos para cada história. Há uma regra subentendida: podes introduzir algo fantástico nos primeiros dez minutos, e está tudo bem. Quando começas a introduzir elementos fantásticos no 40º minuto, as pessoas começam “Vai-te f*$%#, isso nunca aconteceria.” Tentamos limitar a tecnologia e mantê-la verosímil. E porque na vida real sou bastante picuinhas, gosto de obcecar sobre os detalhes que fazem determinado trecho resultar de determinada maneira.” (Wired, Outubro 2016)
O espectador é respeitado e em altura alguma, como o próprio Brooker confirma, existe qualquer intenção doutrinadora ou divinatória. A premissa de toda a série é a formulação de uma hipótese, a que junta uma ideia que lhe pareça promissora.
“Normalmente, é uma ideia que me faça rir, ou algo que (…) seria bastante perturbador e horrível. Em geral, a regra base é: alguma lógica horrível entra em espiral descontrolada. (…) Gosto sempre de manter um pé na realidade. Mantém as histórias plausíveis, mesmo quando são ridículas. A tendência é pensar numa ideia “e se?” que me divirta. Se vai ao encontro de algo que se passa no Mundo, seja, e acrescenta-lhe uma camada extra de profundidade”. (…) não vejo Black Mirror como uma série com mensagem. A minha prioridade é divertir. (…) Dito isto, às vezes há opiniões expressas nos episódios. Mas a série não oferece soluções porque considero isso condescendente quando vejo outras séries. Não tenho a certeza moral para saber qual será a minha mensagem para as pessoas, por isso tento não lhes dar muito na cabeça – penso eu, talvez erradamente. Em última instância, não sei. As pessoas podem tirar a porra de mensagem que quiserem as *”#$% (risos).” (idem)
Nesta temporada, a tecnologia mantém-se como ponto de fuga para onde convergem todos os feixes narrativos. Mas, mais do que tudo, destaca-se a incapacidade de adaptação do ser humano às consequências da sua utilização, em todos os aspectos da sua existência, e os reflexos inevitáveis desse perigoso desvio, com destaque para o medo, o isolamento, a ignorância e a manipulação da realidade objectiva e subjectiva (individual e das massas, como lhe chamava Elias Cannetti).
“A série não é anti-tecnologia. (…) não é um problema tecnológico, mas humano. As fragilidades humanas talvez sejam amplificadas por ela. A tecnologia é uma ferramenta que nos tem permitido andar a distribuir pancada como uma criança furiosa.” (The Telegraph, Dezembro 2014)
O tom mantém-se sombrio, mas desta vez o aconchego inesperado da esperança surge no episódio “San Junipero”, o primeiro a ser escrito para este regresso, em que o revivalismo da década de 80 é apenas um dos muitos brindes de uma hora de excelente ficção.
As melhorias são notáveis, em particular no que respeita à qualidade dos efeitos visuais que, sem se imporem ao argumento, conferem um aspecto mais limpo a toda a imagética, com especial destaque para o episódio de estreia, realizado por Rashida Jones (The Office (USA), Parks and Recreation), onde uma relativa “americanização” do todo me fez temer o pior, algo que não se confirmou no resto da temporada. No entanto, verdade seja dita, este aprimoramento visual retira algum poder de choque à série, que perde um pouco do charme alternativo e lo-fi dos primórdios.
Outros detalhes sobressaem. Para cada episódio, foi escolhido um músico diferente para a banda sonora, que funciona quase como contexto palpável ou verdadeira personagem, com contribuições felizes de grandes da área como Clint Mansell, Max Richter ou Geoff Barrow.
O objectivo de obter uma maior amplitude de registos foi superado com distinção, alternando entre a tarimba mais “clássica” da série (episódios sujos, distópicos, depravados e altamente viciantes) e episódios de cariz policial ou romântico, só para dar alguns exemplos, adjectivos redutores para a catadupa de sentimentos conflituantes que vos aguardam.
O contrato com a Netflix estende-se a uma nova série de seis episódios, cuja data de lançamento não foi ainda divulgada.
A fãs fiéis e novatos, Charlie Brooker demonstra que atravessar o oceano e ter milhares de dólares à disposição não o amaciou ou sequer limitou na sua visão acutilante. Funcionou como mero estímulo ao desafio dos caminhos previamente traçados e à construção de novas formas de questionamento e consciencialização da realidade, via ficção.
Black Mirror é um jogo genial de verdade ou consequência viciado à partida, para que nenhuma personagem tenha verdadeiramente escolha, a não ser quando já é tarde demais e a consequência se torna inevitável.
Somos meros espectadores e não passa de pura ficção. Não tenham medo, nada disto vai acontecer…
Peguem nos vossos ecrãs e vamos a isso.
(Nota: todas as traduções são da responsabilidade do autor)