Entrevista. Augusto Fraga: “As minhas raízes são a cultura açoriana e estar com artistas açorianos dá-me um sentido de pertença”

por Francisco Quintas,    23 Fevereiro, 2023
Entrevista. Augusto Fraga: “As minhas raízes são a cultura açoriana e estar com artistas açorianos dá-me um sentido de pertença”
Augusto Fraga / Fotografia de Francisco Quintas – CCA
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O último dia do Encontro Audiovisual Açoriano foi marcado por debates acesos sobre o atual estado do setor audiovisual do arquipélago, sobre as suas carências e potencialidades únicas, motivando os profissionais presentes a listar nomes dispostos a integrar uma associação de produtores açorianos. Reservou-se tempo, igualmente, à exibição de documentários e a apresentações de técnicos e criativos da fotografia, da publicidade e dos videoclips.

Por sua vez, com passagem nas referidas áreas, um dos autores presentes foi Augusto Fraga, nascido e criado em Vila Franca do Campo. Licenciou-se em Comunicação Social, na Universidade do Minho, e seguiu os estudos na Universidade Autónoma de Barcelona e na New York Film Academy.

“Transições e movimentos de câmara dinâmicos são parte das suas habilidades usuais e, enquanto também um operador de câmara, ele está constantemente à procura de ângulos nunca vistos e linguagens visuais especiais. Augusto é um orgulhoso membro do Sindicato dos Realizadores Americanos (Directors Guild of America).” Pelo seu trabalho publicitário, foi premiado no Chicago International Film Festival, em 2014, e no Festival de Cannes, em 2017.

Em 2020, foi distinguido com o Prémio Clube da Criatividade Portugal, na categoria de Melhor Realizador, e com o Prémio PLAY de Melhor Videoclipe, pelo tema “Hear From You”, do DJ e produtor português Branko. Neste momento, o guionista, produtor e realizador micaelense encontra-se em pós-produção de “Rabo de Peixe”, a nova série portuguesa original da Netflix.

Rodada em vários pontos de São Miguel (Ribeira Grande, Vila Franca do Campo, lagoa das Sete Cidades e Furnas) e em Mafra, durante o verão de 2022, trata-se de um thriller “livremente inspirado em factos reais”, que conta a história dum grupo de amigos “cuja vida muda para sempre com a chegada de uma tonelada de cocaína” à costa açoriana. O elenco é encabeçado por José Condessa, Helena Caldeira, Rodrigo Tomás, Kelly Bailey e André Leitão, contando ainda com Maria João Bastos, Pepê Rapazote, Afonso Pimentel, João Pedro Vaz, Rafael Morais, Adriano Carvalho, Albano Jerónimo, entre muitos outros.

“Esta é uma série de puro entretenimento e adrenalina, mas, ao mesmo tempo, uma reflexão sobre a fortuna e fatalidade da condição humana. Sendo eu açoriano, estou muito feliz por trazer esta aventura aos ecrãs da Netflix.”

Augusto Fraga

A série foi assinada em conjunto com os guionistas Hugo Gonçalves e João Tordo e parte dos episódios foi realizada por Patrícia Sequeira, de “Snu” (2019) e “Bem Bom” (2021). Produzida pela Ukbar Filmes, deverá estrear este ano.

Em “Fazer Valer, Notas de Abertura”, Fraga começou por descrever o respetivo percurso profissional, chegando ao processo de desenvolvimento da série. Regressando ao confinamento de 2020, admitiu a necessidade de escrever guiões para satisfazer a necessidade de os realizar. O episódio-piloto foi, então, levado a um concurso de argumentos originais do Instituto do Cinema e Audiovisual (ICA). Demonstrado o interesse da plataforma de streaming, reuniu-se o chamado writers room, que, durante 8 meses, alcançou um total de 60 versões do argumento.

No fim do Encontro Audiovisual Açoriano, Augusto Fraga aceitou conversar com a Comunidade Cultura e Arte, revelando as intenções por detrás do projeto e oferecendo pareceres sobre formação audiovisual e o estado do cinema e da televisão da região autónoma.

Augusto Fraga / Fotografia de Francisco Quintas – CCA

És um realizador, sobretudo, com experiência em publicidade. Pela tua perceção, que formação achas mais proveitosa para um realizador? Achas que é sempre necessária alguma formação académica ou a publicidade vem trazer mais escola (e que muitas vezes não é valorizada)?

Eu acho que demora, pelo menos, 20 anos a formar um realizador. Pode ser 21, depende da pessoa. A formação académica é substituível com a leitura de livros, porque é a mesma formação. O que não é substituível é a realização em si. Ou seja, eu recomendo a quem quiser realizar que realize muitas coisas, a quem quiser escrever que escreva muitas coisas, porque com a execução cai claramente uma melhoria. Essas coisas para terem visibilidade, embora isso não seja a parte mais importante da formação… Sou um grande defensor dos videoclips, porque acho que é um mecanismo fácil para mostrar aos nossos amigos e aos produtores e à família o trabalho que fizemos.

Ficou provado isso aqui.

Exato. Consegues exercitar técnicas, consegues esconder defeitos, porque é normal que na tua primeira aprendizagem haja defeitos. E o videoclip permite, pela sua linguagem, uma narrativa não linear, que esconde defeitos. Portanto, eu se fosse um jovem criador, fazia muitos videoclips e aprendia através disso. Embora, obviamente, a função narrativa é outra, mas, para aprender técnica, que é o que eu penso que estavas a falar, trabalhava nos videoclips. Para aprender linguagem narrativa, fazia pequenas curtas e tentava que tivessem um craft, uma execução muito alta.

“Como eu saí daqui muito novo (…), perdi raízes. E as minhas raízes são a cultura açoriana. E estar ao pé de artistas açorianos dá-me um sentido de pertença e, pessoalmente, isso é o que me enche a alma.”

Augusto Fraga

Mas tu, em particular, achas que não tens experiência suficiente em videoclips?

Não, na minha formação – eu já passei os 21 anos –, os videoclips foram importantes por isso, porque foram experimentação. Na publicidade, nós contamos histórias num minuto, não é? Portanto, com objetivos muito claros, mas, por outro lado, com meios muito maiores do que os que têm os videoclips ou o cinema. Aprendemos muito de técnica. Sobre sensibilidade humana, que é o que o cinema é, eu acho que só fazendo formatos longos é que se consegue aprender.

Falando em formatos longos, agora sobre “Rabo de Peixe”. Disseste que partiu um bocado da tua necessidade de escrever um guião, porque não tinhas. Mas, em relação à história, achas que partiu da tua necessidade de contar esta história, em particular, porque era algo que a ilha e o arquipélago mereciam, ou reconheces que tinha, eventualmente, um potencial comercial por se tratar de uma história de narcotráfico? Juntou-se o útil ao agradável?

“Rabo de Peixe” não é sobre narcotráfico. Ou seja, a história, que é o detonante, é o trigger da ficção que está escrita depois, é uma parte pequena, é uma história que eu senti necessidade de contar – é a outra história de “Rabo de Peixe” que vocês vão ver quando virem a série –, que é a história da necessidade de sair para nos conhecermos. É uma história muito mais universal, de um grupo de amigos que tem um acidente (que é esse, esse sim é real), mas é sobre eles, é sobre o ser ilha, é sobre viver numa ilha, a necessidade da América, o desejo de sair, de ir para outro lado, o sentir-se preso. É sobre isso a história, não é sobre narcotráfico.

E o que é que distingue essa necessidade humana de um açoriano da de um lisboeta ou de um portuense ou de quem for?

Eu acho que nós somos uma nação diferente do resto do país. Pela nossa história, pela nossa cultura, pelo simples facto de nascermos isolados e sermos poucos e estarmos sujeitos a um clima e a uma ilha que são dramáticos – temos tremores-de-terra, temos tempestades, temos vulcões –, portanto, há um dramatismo existente aqui, por isso a religião é tão presente aqui também, pelo isolamento e por essa presença de uma ilha que é monstro, que é forte. Torna-nos diferentes e tem a ver com os nossos avós, os nossos antepassados, como as nossas casas são construídas, como é a cor das nossas estradas, como é a comida que nós comemos… Não somos iguais. Os açorianos não são iguais. Há uma cultura comum, mas não são iguais ao resto do país. E, por isso, eu quis tentar mostrar um bocadinho do que é que é ser açoriano, que é muito mais do que as lagoas no verão, não é?

Já que estás a falar dos Açores. Neste evento, disse-se muita, muita coisa sobre o estado atual, sobre as deficiências, as carências,… de tudo, do panorama audiovisual açoriano, portanto ia-te pedir uma síntese.

Para mim, foi importante estar aqui, não só por um lado, chamemos-lhe, altruísta – tentar trazer a minha experiência internacional para os Açores –, mas sobretudo porque eu, em tudo o que faço, sou Açores. E tudo o que escrevo é daqui. Estar com pessoas que são assim também dá-me um sentido de pertença. E como eu saí daqui muito novo, e depois saí de Portugal muito novo, e depois saí de Espanha muito novo, fui saindo de vários países, perdi raízes. E as minhas raízes são a cultura açoriana. E estar ao pé de artistas açorianos dá-me um sentido de pertença e, pessoalmente, isso é o que me enche a alma, por estar aqui hoje.

Ainda sobre a série, estavas há bocado a falar sobre como nasceu (fonte de inspiração, o que te levou a escrever, etc.). Sobre a writers room – corrige-me se estiver enganado –, foi o teu primeiro projeto de ficção…

Não, eu fiz muitos projetos de ficção antes. Nunca com esta dimensão, fiz curtas e essas coisas.

Então entendeste que sozinho não davas conta do recado de escrever um argumento? Como é que se procedeu a essa recruta?

O processo foi esse: eu escrevi um guião, mandei a um concurso, não esperava ser selecionado, e quando houve a possibilidade de trabalhar no desenvolvimento – a Netflix convidou, não é? –, eu disse “Bom, mas eu não sou guionista, eu sou realizador. Eu escrevi um guião para poder realizar uma série que goste e, agora, precisamos de guionistas de verdade, que são pessoas que trabalham nisso, a profissão delas é especialistas no guião”. E o guião é uma arte, mas é uma ciência, tem uma fórmula clara (ou várias), não é criação livre como possa ser a pintura ou a escultura ou outras formas de arte .

Augusto Fraga / Fotografia de Francisco Quintas – CCA

E o convite ao João Tordo e ao Hugo Gonçalves e a quem mais?…

E ao Francisco [Afonso] Lopes e ao Fernando Mamede, éramos quatro mais eu. Mais uma script doctor no Brasil, portanto éramos seis pessoas a trabalhar durante meses. O Hugo e o João, cada um – eu falei com muitos guionistas antes de convidá-los a eles –, têm grandes mais-valias. O João é um talento e nato no simbólico e no emocional, deste meu ponto de vista, e o Hugo é especialista em estrutura e em curvas dramáticas e curvas de personagem, eu sinto que ele é mais forte nisso. Obviamente, é uma perceção minha. Outros guionistas ou talvez eles próprios não pensem isso de si. Mas a perceção que eu tive é que juntos somavam mais. Eles já tinham trabalhado juntos na “Até Que a Vida Nos Separe”, que é uma série portuguesa também, e noutros projetos, que eu tinha gostado, portanto tinha toda a lógica trabalhar com eles.

“Sobre sensibilidade humana, que é o que o cinema é, eu acho que só fazendo formatos longos é que se consegue aprender.”

Augusto Fraga

Então, para contextualizar. Disseste que “Rabo de Peixe”, neste momento, está em pós-produção de som e banda sonora?

Está em pós-produção, exato. Também de imagem, de som. Montagem já terminou. E agora as datas oficiais eu não sei. Não sei, exatamente. Será em 2023! Não faço ideia de qual é a data exata.

Antes do verão, durante o verão?…

Não sei mesmo. Ou seja, não tenho informação oficial que me digam quando é que vai ser. Não sabemos. Isso tem a ver com estratégias, eu imagino, da Netflix que me ultrapassam.

Esta entrevista teve o contributo de Ana Marques.

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