Contra a actual estratégia de incentivo à leitura
O sistema educativo e a sociedade civil (de forma muito limitada, por sinal) desdobram-se em estratégias de incentivo à leitura. É preciso criar esse gosto pelos livros desde pequeno, diz-se, e procura-se articular as vantagens da leitura como forma de convencer os jovens a pegar num livro. Os resultados de tal estratégia, no entanto, não se fazem ver. Os jovens continuam a ler pouquíssimo, ainda que seja imprescindível perceber que essa tendência está muito longe de ser exclusiva aos de menor idade. A verdade é que vivemos num país com níveis de literacia e de leitura baixíssimos (quer entre jovens quer entre adultos), e abundam as posturas de desprezo em relação às letras e a tudo o que não encerre conhecimento dito técnico. Mesmo entre os portugueses que fazem caminhos educativos extensíssimos, são bem mais abundantes aqueles que não têm quaisquer hábitos de leitura.
Mas ao colocar a ênfase na leitura, perde-se precisamente a causa da inexistência desses hábitos. O importante não é o acto de se ler, por si só, se o que se lê não for mais do que o vulgar entretenimento que não provoca qualquer tipo de reflexão no leitor. É preciso não esquecer que os tops de vendas livreiros continuam a ser preenchidos por autores como José Rodrigues dos Santos ou Pedro Chagas Freitas (que, vergonhosamente, já marcou presença num manual do 1.º ano e numa actividade do Concurso Nacional de Leitura). Que interessa que se tenha até hábitos de leitura e se leia muito se o que se lê são apenas variações do Código da Vinci e do Nicholas Sparks, ou livros juvenis como o Harry Potter? Não será isso praticamente o mesmo que devorar séries televisivas triviais ou filmes banais de domingo à tarde?
No fundo, o incentivo não deve ser pela leitura, mas sim pela arte, pelo que, por oposição ao entretenimento, faz pensar. Por isso mesmo, a arte é complexa, e aí, mais que tudo, é importantíssimo ajudar a criar hábitos de pensamento crítico que sejam ferramentas para, mais do que contrariar a sua recusa, estimular o seu enfrentamento.
Depois de criada essa relação com a arte, os meios pelos quais se consome acabam por ser complementares, mesmo que haja, obviamente, diferenças entre as formas de expressão. Reconheço na literatura qualidades e possibilidades não facilmente alcançáveis noutras expressões artísticas, mas o mesmo é válido para o inverso. Também a literatura não é capaz de fazer coisas possíveis, por exemplo, ao cinema. Mas é aí que entra, precisamente, a questão da preferência, e alguém que ganhe o gosto pela arte e que com ela crie uma relação, alguém que não se limite a consumir entretenimento (qualquer que seja o meio) para se se sentir bem ou para passar o tempo, irá ser alguém formado enquanto cidadão e disponível para todas as expressões artísticas.
O incentivo à leitura é, portanto, a maneira errada de abordar a questão, vinda de um tempo onde a leitura era um dos únicos meios possíveis de aceder à arte. Alguém que leia imensos thrillers não é diferente de alguém que os veja em formato televisivo ou cinemático, da mesma maneira que não é diferente quem leia imensa literatura de quem veja imenso cinema de autor. O que nos interessa não deve ser o meio, mas sim formar cidadãos que sejam capazes de pensar e de se relacionar intelectual e emocionalmente com o mundo que os rodeia.
Não quero, com isto, retirar validade ao entretenimento no exercício da sua função, que não é nem pode nunca ser a mesma da arte. Não podemos é aceitar que essa seja a única componente presente nas nossas vidas. O processo não se pode limitar a isso, apenas isso não chega, e o erro das actuais estratégias de incentivo à leitura é precisamente deixarem-se ficar por aí, ao não abordarem a questão. Estranho ou não, só se criará hábitos de leitura quando se deixar de falar deles. Quando se perceber que o importante é que se crie o interesse pela arte e, por acréscimo, por todas as suas expressões. Nessa altura, todas elas colherão resultados.