“Raiva”, de Sérgio Tréfaut, é feito de sombras e rostos expressionistas aprisionados à terra
Sérgio Tréfaut concretiza finalmente o seu grande épico naquele que é já um dos grandes clássicos do cinema português. Mas Raiva vai para além da adaptação de Seara de Vento, o romance maldito de Manuel da Fonseca, no esforço de tentar arrancar do chão as raízes teimosas de uma certa maneira de ver o mundo, ao concretizar um olhar de carga mitológica que liga o Alentejo ao centro do mundo e ao cinema feito de causas de Sérgio Tréfaut. Como se tudo o que fizera antes servisse de esboço para esta crónica de uma morte anunciada mas com o peso e a sonelidade do Cante alentejano.
Raiva é um filme notável, alucinatório, feito de sombras, de rostos expressionistas aprisionados à terra e que com ela se confundem. Naturalmente, atravessado por quadros de western, em que nos sentimos proximos da sonelidade das paisagens e personagens de A Desaparecida ou O Homem Que Matou Liberty Valance, de John Ford, embora marcados por uma depuração social mais próxima de uma herança neorealista, em que se celebra o significado primordial do pão, mas também da honra e do destino dos homens. Não só a honra de Palma, corporizada pelo magnífico estreante Hugo Bentes, a carregar em si a intensidade do cantar alentejano (cujas marcas vivem no anterior documento Alentejo Alentejo) e a partilha nessa personificação social dos descamisados e oprimidos. Talvez por isso não deixa de ser paradoxal como Raiva receber uma inesperada atualidade num momento em que se trocam valores essenciais por quimeras de um referencial banal.
É numa exegese minuciosa que Tréfaut trabalha cada plano aliando a fotografia contrastada a preto e branco de Acácio de Almeida de modo a conferir ao filme essa espessura clássica. Dele sai um conjunto de personagens servidas por uma dimensão intemoral, fantasmagórica, cujos gestos repetidos estarão mais próximos do cinema severo de Béla Tarr, em que nos questionamos se estão vivas ou mortas. Como se fossem zombies ou aparências de um passado eterno, de coisas que teimam em não mudar. Como a imagem petrificada da imponente Isabel Ruth, sólida como uma rocha, mas em que se pode ler um passado de lástima em cada ruga do seu rosto, ou o assustador olhar de caçadeira de Hugo Bentes onde perpassam outros tantos heróis e vilões do passado. Uma imagem fortíssima que nos sugere até um racord inesperado com o rosto preso de Albano Jerónimo, no admirável Mariphasa, de Sandro Aguilar. Como se o próprio cinema brotasse deles mesmo.
De resto, é com essa explosão de violência e ajuste de contas que começamos, logo no início do filme, para fixar o destino marcado de Palma, mas para regressar depois, em flash back, ao sentimento que ferve em lume brando, por debaixo da pele.
É assim o cinema de Sérgio Tréfaut, numa janela de intensidade e realismo brutais, herdeira do cinema empenhado do holandês Joris Ivens, que sempre se combinou com a ficção mas que nunca perdeu a sua dimensão profundamente humana. Raiva combina tudo isso. A forma como nos revemos diante do outro. Como em Viagem a Portugal, a sua primeira ficção já depois de Os Lisboetas, sobre os novos emigrantes. Por isso, Raiva fica assim, tal como o cinema de Sérgio Tréfaut, algures entre o céu e o inferno.
Artigo escrito por Paulo Portugal, em parceria com Insider.pt