Entrevista. B Fachada: “No início, só tinha mesmo a minha própria ingenuidade”
3 de Novembro, 18h00. As portas do Cinema Passos Manuel ainda se encontram fechadas, mas, ao longe, já se fazem ouvir uns sons distantes que permitem antecipar o que a fresquinha noite vai trazer. Becas, o dono da casa, e uma figura bem conhecida para quem frequenta os espaços culturais da cidade do Porto, tira as barras da porta e deixa-nos entrar. “O Bernardo já vem ter contigo”, diz, e regressa ao seu pequeno escritório. Os sons do soundcheck começam a ficar mais abafados e, do auditório, no seu jeito tipicamente desajeitado e com um bom humor indisfarçável, sai B Fachada. Hoje é dia de celebrar os 10 anos de Viola Braguesa, regravado no fim de Outubro, com um concerto especial; é apropriado, especial não fosse esse EP que, de várias maneiras, constituiu um ponto de viragem para o cantautor lisboeta.
O artista precisou de “revisitar muitos fantasmas” para voltar a gravar as suas canções. Elas “existem por si, mas eu tenho uma relação pessoal com elas e com a altura em que as escrevi”. B Fachada reencontrou-se com “fantasmas de sítios, de momentos” e até “de pessoas que ficaram presas naquela altura e que nunca mais vi”.
Com um sorriso no rosto, B Fachada puxa do cigarro que traz no bolso e observa que o tempo consegue distorcer várias narrativas. É mais ou menos isso, afirma, que acontece com o seu EP, um trabalho que, “à distância, é fácil de interpretar como um disco de profissionalização, mas na altura não teve exactamente esse significado”. “Não era um disco que passasse na rádio nem nada”, lembra. Mas o impacto que teve a longo prazo é fácil de assinalar: “ele, de facto, marcou um momento em que as pessoas começaram a aparecer para ver os concertos, que era uma coisa que não acontecia até aí”.
“Havia, na altura, uma ideia de que não havia público para aquele tipo de música”, observa B Fachada. O cantautor faz uma pausa, e acaba por ter de retroceder para voltar a pensar na sua resposta: “de certa forma, não havia, porque não havia sítios para tocar, mas eu achava que, se acertasse na música certa, era obrigatório que as pessoas estivessem lá”. Afinal de contas, “toda a gente ouvia muita música, consumia muita música, estava muito atenta a tudo o que se estava a passar na música estrangeira”. A sensação geral era a de que “a música em Portugal, a música que nós fazíamos, ainda estava despovoada”. Havia, no fundo, “um buraco que ainda estava por preencher”, e B Fachada decidiu “trabalhar com a intenção de preencher esse buraco”.
Se havia esse buraco no panorama nacional, o músico sente que, de uma maneira similar, também começou a trabalhar num vazio. “No início, só tinha mesmo a minha própria ingenuidade, e isso fez com que tivesse que aprender as coisas mais básicas do ofício uma a uma”, admite. B Fachada precisou de saber mexer com as ferramentas todas – “não fazia parte do meio, não fazia parte das bandas, não tinha editoras, e a música que eu fazia quando comecei não era para ninguém”. Isto não é uma hipérbole: “os concertos estavam sempre literalmente vazios – eventualmente, podiam ter o amigo ou a amiga que estava comigo naquela noite, mas nunca muito mais do que isso”.
B Fachada, de resto, operou sem bandas ou editoras porque essa sempre foi uma decisão sua. Conforme sublinha, “era uma situação que eu cultivava”. Assim como cultiva uma tentativa de “manter-me à margem da economia vulgar do meio em que trabalho”. O lisboeta pretende “trabalhar de uma certa maneira para ter a certeza de que a música sobrevive a essa economia. Eu quis trabalhar como artista independente para poder fazer sempre as coisas à minha maneira. Via uma maneira de fazer as coisas e via que ninguém as estava a fazer dessa maneira”.
B Fachada passou pela Antena 3 no fim de Outubro para falar da nova roupagem que deu aos temas de Viola Braguesa, e sublinhou que muita coisa pode mudar em 10 anos. Mudaram os métodos de produção e distribuição, e, segundo o cantautor, mudou literalmente o próprio público. “A minha geração emigrou”, conta. “Esse público do Viola Braguesa, esse público que encheu pela primeira vez um concerto meu – ainda nós oferecíamos os discos à entrada -, esse público emigrou quase todo. O público foi ficando muito mais variado, não aumentando muito de tamanho. Mas eu gosto de acreditar que também mudou em sentido figurado”.
“Isto é uma coisa que o Zeca [Afonso] já dizia, mas a música intervém musicalmente”, refere B Fachada. “Se há coisa que podes mudar, se há maneira como podes intervir, é sobre a maneira como as pessoas ouvem música. Eu gosto de acreditar que vou contribuindo para algum espírito crítico, ou que deitei alguma água para cima da fervura nacionalista, ou que contribuí para que algumas pessoas, um grupo de pessoas da minha geração e ainda duas ou três gerações abaixo, passassem a prestar mais atenção a essas pequenas rasteiras que nos pregam ou tentam pregar todos os dias, e às coisas que nos apresentam como sendo verdadeiras e que devemos estar sempre a questionar”.
Apesar deste ‘novo’ trabalho, B Fachada já não escreve um álbum de originais há quatro anos. Estamos a falar de uma pessoa que, entre 2008 e 2012, trabalhou a um ritmo louco e lançava dois ou três discos por ano. Efeitos da paternidade? Talvez. O artista não o diria de forma tão explícita, mas o pensamento está lá: “Não quero ser aquela pessoa que, depois de morrer, as pessoas perguntam aos meus filhos como era a vida lá em casa, e eles dizem ‘ah, o meu pai era porreiro, mas, quer dizer, a música vinha sempre em primeiro lugar’. Não quero ser aquele gajo de quem se diz que a música vinha sempre em primeiro lugar”, brinca. E, aproveita para acrescentar, “nós recusamo-nos a ser escravos do dinheiro. Não vai ser essa a vida familiar que vamos ter, em que temos de trabalhar 12 horas por dia porque estamos a ‘proporcionar’ para os nossos filhos. Não é nesse tipo de ‘proporcionar’ que estou interessado”.
Está a chegar o momento de darmos a conversa por terminada. B Fachada começa a trocar ideias com Maria, dos Pega-Monstro – é ela que, por volta das 22h00, vai fazer a abertura –, e despede-se com o mesmo sorriso que tinha na cara quando a entrevista havia começado. Agora o resto fica só para daqui a umas horas. B Fachada irá tocar os temas de Viola Braguesa, claro, mas também vai passar por O Fim e Há Festa Na Moradia, e não terá problemas em atender ao fã entusiasmado que, a partir das primeiras filas, pediu “Joana Transmontana”. As piadas, acompanhadas daquele riso sempre desconcertante, também hão-de aparecer e dar cor à noite, num Passos Manuel bem cheio e aconchegado.
10 anos depois, a viola braguesa de B Fachada nunca soou tão bem. O artista pode já não lançar músicas ‘novas’ há quatro anos, mas isso não tem que ser um grande problema. Até pode demorar mais 10 anos a escrever; que nunca perca a acutilância e o olho crítico – e a capacidade de nos fazer olhar criticamente para as coisas com ele – é aquilo que mais pedimos.
Artigo publicado originalmente a 16 de Novembro de 2018.