“The House That Jack Built”, um desconforto necessário
O cinema ensinou-nos a simpatizar com serial killers. Existe sempre um certo encanto na esquizofrenia, uma falta de empatia que roça o cómico ou um sentimento de justiça nas acções que os assassinos levam a cabo no grande ecrã. Ficamos fãs da personagem de Christian Bale em American Psycho e seguimos o adorável Dexter ao longo de várias temporadas na série com o mesmo nome. Jack é diferente. Não conseguimos gostar dele nem justificar as brutalidades que leva a cabo e isso causa-nos um desconforto enorme. O que devia ser um alívio enorme para a consciência do espectador transforma-se num mecanismo que o leva a repudiar The House That Jack Built. Cumpre-se assim o objectivo de Lars Von Trier.
A narrativa é guiada na primeira pessoa por Jack, brilhantemente interpretado por Matt Dillon, que mantém um discurso com Verge. Apenas conseguimos ouvir este diálogo, mantido ao longo de uma viagem que percebemos que ambas personagens percorrem. “Só não acredites que me vais dizer algo que não tenha já ouvido antes”, profere Verge quando Jack se propõe a contar cinco episódios que marcam a sua vida como assassino em série ao longo de 12 anos. É a primeira pista que o realizador dinamarquês, que se assume claramente contra-corrente, deixa de que estamos prestes a assistir a algo fora do comum. Por vezes exageradamente pretensioso e convicto de ser dono de uma verdade que apenas ele próprio consegue compreender, assim também é Jack.
Os incidentes relatados são violentos, arquitectados para chocar e para horrorizar progressivamente quem a eles assiste. Mesmo os momentos mais perturbadores não são gratuitos, existem para destruir qualquer empatia que poderíamos vir a sentir por Jack após os primeiros dois segmentos, manifestamente mais ligeiros. É uma forma de chamar a atenção do espectador, tão habituado a consumir filmes como fast food sem nada processar. Consequentemente, somos forçados a conhecer Jack, um homem que se tornou engenheiro por pressão familiar, mas que sempre se fascinou com a arquitectura. O seu perfeccionismo e um comportamento obsessivo-compulsivo leva-o a destruir várias tentativas de construir a sua própria casa e são estas características que transporta para os homicídios que comete. Passa tempo em frente do espelho a aperfeiçoar emoções humanas que vê no jornal e regressa diversas vezes ao local do crime para garantir que não ficou qualquer gota de sangue visível para o incriminar. Estas são as características comuns que estamos habituados a ver nos serial killers convencionais do cinema e sobre as quais Von Trier lança aqui uma sombra negra, juntando-lhes a repulsa causada por uma série de episódios atrozes.
A certo ponto, o protagonista afirma que “as atrocidades que cometemos na ficção são os desejos mais perversos que não podemos levar a cabo numa civilização controlada”. Torna-se claro, caso não fosse até então, que Jack é o veículo de Lars Von Trier para passar as suas convicções mais extremas e controversas para o exterior. A simpatia e admiração por Hitler é também demonstrada por Jack, ao afirmar que figuras como o líder do partido nazi ou Estaline, a par das atrocidades que levaram a cabo, constituem a verdadeira arte. Do mesmo modo, os homicídios que Jack comete são, de acordo com o mesmo, uma expressão artística. A personagem de Verge surge como o travão no extremismo, contestando os pontos que Jack argumenta ao afirmar que a verdadeira arte nasce do amor. Simultaneamente somos confrontados com segmentos daquilo que convencionalmente é considerado arte, sendo o mais recorrente um vídeo de 1959 do pianista canadiano Glenn Gould a tocar Bach. Não há aqui lugar para o convencional.
Quando não afunda em posições extremistas, Von Trier toca em pontos críticos com os quais não estamos habituados a ser confrontados e que geram desconforto. Sucedem-se as interpretações e analogias para justificar as posições de Jack acerca de sítios comuns de confronto na obra do realizador, como a religião e a sociedade. Quando no quarto episódio relatado o protagonista sugere à sua vítima que grite, ciente de que ninguém vai dignar-se a prestar atenção ao pedido de socorro, Von Trier mostra o porquê de ter realizado The House That Jack Built desta forma. É inútil hoje em dia chamar a atenção para o que realmente interessa da forma convencional. A controvérsia que envolve o filme é propositada e serve como o meio para chegar a um fim. De outro modo, este corria o risco de não penetrar na barreira que existe entre o espectador e a sua atenção.
À medida que a narrativa caminha para o final, são invocados cenários dantescos, numa viagem ao centro de um dos extremos da ideologia religiosa. As atrocidades de Jack ficam para trás e passamos todos por uma espécie de purgatório que não parece levar a lado algum. A tentativa de terminar em apoteose cai por terra numa sequência que perde força e sentido, não apagando no entanto tudo o que fica para trás. A casa que Jack constrói não é convencional, assim como não são também as suas crenças, os seus argumentos e a convicção total de que não pode haver arte sem caos e destruição. Era necessário que assim fosse, por mais choque, indignação e repulsa que possa causar. No final, é com alívio que percebemos que ainda é possível sentir algo através do cinema, uma técnica que, afinal de contas, consideramos unanimemente arte.