‘Inter-Missão’: ainda não chegámos ao ponto rebuçado de Mike El Nite
Dê por onde der, Mike El Nite já tem garantido um lugar especial na história do hip hop português. Foi um dos principais impulsionadores de uma revolução digital numa altura em que o género por cá ainda era muito à base do boom bap e apelava a uma nostalgia da gloriosa golden age do hip hop. Miguel Caixeiro é um rapper conceptual, e o alter ego que ostenta tem demonstrado uma criatividade e originalidade distinta, surgindo do mundo dos jogos de computador e da cultura popular norte-americana, fundindo-os de uma forma característica com a cultura portuguesa e o hip hop nacional.
A forma mais óbvia é através do uso extensivo de estrangeirismos, mas também através da distorção vocal (presente em lançamentos de artistas como A$AP Rocky ou da colectiva Odd Future), que Mike El Nite junta os dois mundos separados por um oceano. Rusga para Concerto em G Menor foi o seu primeiro trabalho, mas a consagração só surgiu em O Justiceiro, um álbum que cimentou o estilo de Nite e o seu disparar de trocadilhos e jogos de palavras – o primeiro capítulo definitivo da história do personagem criado por Caixeiro. Mas ficou a sensação de que apesar de as ideias de Mike El Nite serem grandiosas, isso não se verifica totalmente no produto final. Inter-Missão, o seu mais recente projecto, sofre do mesmo problema.
Ainda assim, a criatividade mantém-se como a sua principal arma de ataque. Além da cópia física de Inter-Missão, o projecto também inclui uma banda desenhada, baseada numa ideia de Nite, com argumento de Miguel Peres, desenho de Marcus Aquino, colorida por Joana Oliveira e legendada por Ivan Rego. O livro segue as peripécias de Caixeiro desde o seu concerto de apresentação de O Justiceiro na edição de 2016 do Super Bock Super Rock até ao seu fatídico acidente de bicicleta, aproximando mais do que nunca o personagem ao consciente que o materializa. Vemos neste lançamento um artista mais maduro, que aproveita a entrada nos trinta – descrito no trap possante de “L.Y.B.Y.” – para alguns momentos mais emocionais na sua música. Esses momentos são confessionais – como é o caso de “Caixa Negra”, onde Nite divide o microfone com J-K sobre uma batida electrónica assertiva da autoria do produtor Maria – ou mais motivacionais, como em “S.Q.N.”. Com um refrão que se aloja facilmente na cabeça, a batida é descontraída e cintilante, com muita ginga e funk a puxar à dança, e com espaço para alguns momentos engraçados pelo meio (“Mantêm as tuas rezas tights tipo padre de crossfit man”).
À semelhança de ProfJam, parceiro de Nite na editora Think Music, vemos uma aposta num rap mais cantado. Depois de uma pequena introdução, “Carmen” abre o álbum com pujança, naquele que é um belo instrumental de Dwarf, glorioso e épico, e a sample de guitarra portuguesa adequa-se estranhamente aos suspiros melódicos de auto-tune de Caixeiro. É uma música sobre uma mulher que o marcou profundamente, com momentos sinceros bem transmitidos pelo meio – “Feito em cacos vejo pedaços de nós em beijos e abraços que nunca dei” – e outros menos bem conseguidos – “Dar de caras contigo mas como amiga e dar-te cartas mas de tarot”.
A intenção de Mike El Nite transparece nas ideias que expõe, mas a sua execução não as consagra totalmente. “Capacete” é a epítome de uma música deste artista, com vozes transfiguradas, um instrumental que bebe do mundo digital com uma tensão inerente criada pelo som dos teclados, e alguns elementos jocosos que nunca ofuscam a seriedade e sobriedade da música. Mas Caixeiro começa a cantar, atropelando-se num cliché e disparando mais uns quantos no decorrer da música, apresentando uma canção que é apenas um public service announcement pouco inspirado e cujo seu momento mais confessional começa de maneira constrangedora:
“Ok, ’tá aqui bué leite derramado
E não vale a pena chorar
Ele só fica mais salgado”
E depois há “Dr. Bayard”, um tema que destoa completamente do conceito do projecto. É um banger poderoso, a sua batida incute uma aura ameaçadora, exportando bem o que está mal no trap norte-americano. A única parte verdadeiramente criativa é a incorporação da tosse de Nite como adlib. O conceito do tema, bem explorado por Nite, passa ao lado dos convidados e, apesar de Fínix MG demonstrar alguma destreza nas barras, Sippinpurpp é dos rappers mais desinteressantes do panorama actual, usando o auto-tune mais como muleta do que como adição à sua voz, e é algo que não esconde a sua precariedade lírica.
O campeonato de Nite é à parte dos restantes intervenientes no hip hop. Mas isso não deveria querer dizer que o artista tem carta-branca para descurar o seu trabalho, e é isso que se verifica em Inter-Missão. As barras soam pouco inspiradas, os instrumentais diferentes mas, de maneira geral, pouco definidos, e o conceito do projecto não é claro ao longo do mesmo. Nite refugia-se em lugares comuns quando é claro que é um dos rappers mais singulares da história do hip hop português. No entanto, continua a mostrar que a sua música surge de um lugar único e que apenas ele perscruta. É definitivamente um projecto de Miguel Caixeiro e é um projecto em que vemos o personagem mais próximo do artista, e depois da queda é para se pegar na bicicleta outra vez, porque, certamente, melhores tempos virão.