Jenny Erpenbeck e a ficção enquanto solução para o tempo presente

por Miguel Fernandes Duarte,    30 Janeiro, 2019
Jenny Erpenbeck e a ficção enquanto solução para o tempo presente

Raramente a realidade é capaz de satisfazer as nossas dúvidas. Faltam-nos sempre peças para que possamos fechar o puzzle que se nos afigura diariamente, e nem sempre o real nos dá espaço para as encontrarmos. Há algo que o limita. Mas, esses espaços que a realidade deixa escuros e inacessíveis, a ficção ilumina. Não completamente, claro, o clarear persiste em depender do ângulo do qual o foco incide. Algumas áreas mantêm-se inegavelmente sombrias porque obstáculos se atravessam. Mas alguns desses obstáculos que a realidade nos impõe tornam-se contornáveis quando nos afastamos e olhamos de outra forma. A ficção permite chegar onde a realidade não deixa, explorar caminhos de outra forma inacessíveis, criar pontes entre pontos que, no real, se mantêm afastados, e na ficção ganham harmonia. Não é a ausência de relação entre si que os afasta, mas o que se atravessa entre eles que impossibilita o olhar. Mas, caso a ficção crie as pontes, o real não tem como derrubá-las.

Em Eu Vou, Tu Vais, Ele Vai (Relógio d’Água, 2018), a alemã Jenny Erpenbeck consegue precisamente criar pontes e ligar conceitos que a realidade dificulta, num livro onde conta a história de Richard, um académico alemão versado em Filologia Clássica, viúvo e acabado de se reformar, que se aproxima de um conjunto de refugiados.

Erpenbeck, escritora alemã de 51 anos nascida na então República Democrática Alemã (vulgo Alemanha Oriental ou RDA), sempre se preocupou com a história e com o tempo. Em Heimsuchung (Visitação, em tradução livre), de 2008, contava a história da Alemanha do século XX através das vidas de sucessivos habitantes de uma propriedade, e, no seu livro anterior, Aller Tage Abend (Todos os dias à noite, em tradução livre), de 2012, voltou a essa história através das diversas possibilidades de vida de uma mulher que a autora vai continuamente matando em diversas fases da sua vida, numa construção que ilumina os variados caminhos que a vida pode tomar.

O foco incidia sobre acontecimentos políticos históricos, mas em Eu Vou, Tu Vais, Ele Vai, é o presente que está em destaque. Num tempo em que a Europa regressa a políticas que estiveram marcadamente ausentes das décadas do pós-guerra, a crise dos refugiados chegados à Europa, vindos sobretudo de África e do Médio-Oriente, é tema premente, mesmo em Portugal, onde praticamente nem se dá pelos seus efeitos.

Um grupo de refugiados desembarca / Fotografia de Kevin Karpov

Ora, na Alemanha o caso muda de figura. É um dos mais procurados destinos dos refugiados, um dos mais ricos países da Europa e do mundo, destino óbvio até para os portugueses que emigram. Mas a sua política de acolhimento (e a da Europa, no geral), mesmo se Angela Merkel tem mostrado a mínima abertura, é uma de limitação, de temporalidade de permanência. Porém, se muitos se manifestam contra a sua permanência e outros tantos lutam a favor dela, para a maioria a relação é sobretudo de distanciamento.

Richard é uma dessas pessoas. Toda a sua vida se mantivera em bolhas – a da academia, a da RDA – e, mesmo depois de se reformar, está tão imerso no seu mundo que, ao passar na Alexanderplatz, em Berlim, não repara no protesto que um grupo de refugiados faz no local. É só ao chegar a casa que se depara com a cena num canal noticioso e o seu quotidiano se quebra. Como pudera não ver o que se passara à sua frente? Richard choca-se com o seu desconhecimento acerca destas pessoas e das suas vidas. Onde são exactamente os países de onde vêm todos estes homens? Quais são as suas capitais, onde são as suas fronteiras?

Quando se apercebe que alguns daqueles homens, que viviam em tendas na rua, vão ser acolhidos num antigo lar de idosos perto da sua casa, num subúrbio calmo de Berlim, Richard decide, então, começar um novo projecto. Como se de trabalho académico se tratasse (provavelmente a única maneira que conhece de abordar problemas), marcha em direcção a esse antigo lar com uma lista de perguntas a fazer aos refugiados:

“Onde cresceu? Qual é a sua língua materna? E qual é a sua religião? De quantas pessoas se compõe a sua família? Como era o apartamento ou a casa onde cresceu? Como se conheceram os seus pais? Havia uma televisão? Onde dormia? O que havia para comer? Em criança, qual era o seu esconderijo favorito? Frequentou a escola? Que tipo de vestuário usava? Havia animais domésticos? Aprendeu uma profissão? Constituiu família? Quando deixou o seu país? Porquê? Ainda tem contacto com a sua família? Qual era o seu objectivo quando partiu? Como se despediu? O que trouxe consigo quando partiu? Como imaginava a Europa? O que é diferente? Como passa os dias? Do que sente falta? O que deseja conseguir? Se tivesse filhos que crescessem aqui, o que lhes contaria do seu país? Consegue imaginar envelhecer aqui? Onde quer ser sepultado?”

Richard fala com eles em inglês ou italiano. Alguns deles vão aprendendo alemão ao longo do livro, e é precisamente dessas aulas, enquanto aprendem o verbo ir, que chega o título do livro.

O seu desconhecimento inicial face a estas pessoas leva-o a associá-los àquilo que lhe é quotidiano, e é assim que homens como o ganês Awad ganham nomes como Tristão, Ulisses ou Apolo. Richard encontra neles esse estranho paralelo com figuras da literatura clássica, nomes que nada dizem a estes homens. Vidas distantes daquelas vividas na Europa. Awad, ganês que crescera na Líbia e trabalhava como mecânico antes da guerra civil que começara com a queda de Kaddafi, é posto num barco juntamente com outros tantos e lançado ao mediterrâneo. Passara praticamente um ano num campo de refugiados na Sicília antes de chegar à Alemanha. O nigerino a quem Richard chama Apolo é Tuaregue, nunca conhecera os seus pais e trabalhara enquanto escravo durante tanto tempo quanto lhe era possível lembrar-se. Já Rashid, nigeriano, fora vítima daquilo que parece ser um ataque do Boko Haram. Fora para Itália num barco juntamente com oitocentos outros. Quando a guarda costeira italiana os resgatou, o barco virou-se e quinhentas e cinquenta pessoas afogaram-se. De Yussuf, maliano que trabalhara como ajudante de cozinha em Itália, Richard lembra-se de quão orgulhoso ele ficara ao aprender a dizer máquina de lavar loiça, e pensa também como ele tinha dito que gostava de ser engenheiro. “Agora não passa de um tresloucado e, se não se acalmar, irão metê-lo num colete de forças e levá-lo dali.”

Barco de refugiados no mediterrâneo / Fotografia de Giorgos Moutafis – Reuters

São totalmente vistos como o Outro. E, se inicialmente há distanciamento entre Richard e estes homens, cujos quartos visita para praticamente conduzir um interrogatório, há medida que os vais vendo em diferentes fases do seu dia e os vai conhecendo melhor, vai ajudando como pode. A Osoboro, que lhe diz querer ser músico, permite que vá a sua casa praticar no seu piano em que praticamente não toca, e a Rufu permite-lhe que vá a sua casa ler a Divina Comédia, o único livro em italiano que possui na sua biblioteca pessoal. É praticamente o único alemão que, não tendo qualquer relação profissional com estes homens, os ajuda.

Numa história tão profundamente humanista, Jenny Erpenbeck corre o risco de ser moralista ou até didáctica, mas a sua prosa liricamente austera permite que o livro não caia na armadilha da compaixão fácil. Segue os ritmos da vida quotidiana de Richard e mostra como, tal como os refugiados, também Richard é um homem deslocado. Durante praticamente toda a vida vivera em Berlim Leste, e, nos dias de hoje, nesta Alemanha reunificada, sempre que visita um local lembra-se de como este era antes da queda do Muro. Ao fazer férias, procurava “o isolamento que já não conseguia encontrar no seu país, qualquer coisa semelhante ao abrigo proporcionado por um muro”, e continuava a perder-se ao andar de carro em Berlim Ocidental. Quando comparado com os seus congêneres da Alemanha Ocidental, Richard era também menos rico, recebendo uma pensão inferior aos colegas que haviam exercido os mesmos cargos em universidades ocidentais. A sua vida era também uma de guerras, fronteiras e deslocamento, e sabia como as construções humanas roem de um momento para o outro.

O muro ruíra, a Alemanha mudara, mas não era “possível explicar o bem-estar material de um lado, nem a economia planificada, do outro, por qualquer característica particular dos cidadãos alemães, que constituíram apenas a matéria-prima destas experiências.” Porque razão se sentiriam orgulhosos de ser alemães? “Porque haviam de se considerar melhores em oposição a qualquer outro, pior? É certo que tinham trabalhado a vida inteira, mas nunca tinham sido proibidos de o fazer.” O desenrolar dos acontecimentos, a progressão do antes para o depois, não seguira regras de recompensa ou de castigo. Porque haveriam estes homens agora chegados à Alemanha de ser castigados pelos problemas dos locais onde haviam nascido e crescido? Quando comparado com estes homens, Richard era um cidadão profundamente privilegiado. As suas maiores preocupações eram profundamente banais.

“Enquanto de uma lista sua constaria, por exemplo:

chamar técnico de manutenção da máquina de lavar loiça
marcar consulta no urologista
leitura dos contadores

na lista de Karon estaria:

acabar com a corrupção, o compadrio e o trabalho infantil no Gana

Ou, na de Apolo:

mover uma ação judicial contra a empresa Areva (França)
pôr no poder um novo governo no Níger a quem os investidores estrangeiros não pudessem subornar ou chantagear
criar um Estado tuaregue independente (falar sobre isto com o Yussuf)

E a de Rashid teria escrito:

reconciliar os cristãos e os muçulmanos da Nigéria
convencer o Boko Haram a depor as armas

A estes homens, nenhum outro caminho era oferecido para que voltassem a ter uma vida dita normal. Era-lhes pedido que praticamente mudassem todo o seu país para poderem ser quem quisessem. Não sendo autorizados a procurar trabalho na Alemanha por o seu requerimento de asilo ter de ser processado no país no qual chegaram à Europa (no caso, a Itália), “o que aqui […] parece paz, para estes homens, […] em princípio é ainda guerra.” Querem poder procurar trabalho para serem eles próprios a organizar a sua vida, “como qualquer outra pessoa em posse de todas as faculdades físicas e mentais.” Tão consumidos pelas suas preocupações, têm até medo de ter esperança, e como diz, a certa altura, Awad a Richard: “Se os teus pais não te educaram bem, tornas-te ladrão. Se tiveste bons pais, lutas pela sobrevivência.” No fundo, fazem o possível para poderem recomeçar a sua vida num local que lhes é completamente estranho. Nunca ouviram sequer falar de Hitler nem do Muro de Berlim. Não são só os alemães que nada sabem sobre as vidas destes homens, também eles desconhecem as particularidades do local para onde vão. Mas “para onde vai uma pessoa quando não sabe para onde há de ir?”

Jenny Erpenbeck / Fotografia de Renate Von Mangoldt

Acaba-se a escolher o único sítio que se afigura como solução, mesmo que muitas vezes nem o seja. Porque aí, perante a chegada de tantos “Outros”, os locais só veem uma invasão. Nem percebem como também estas pessoas são capazes de lhes mudar o olhar, como aquilo que tomam como garantido assenta em bases imperfeitas.

“Grande parte […] são coisas que soube durante quase toda a sua vida, mas que só hoje, através da pequena parcela de conhecimento que agora adquiriu, se mistura de maneiras novas e diferentes. Quantas vezes, pergunta-se, se tem de aprender de novo o que já se sabe, redescobrir vezes sem conta, e quantas capas é necessário arrancar antes de finalmente se conseguir compreender as coisas até ao âmago?”

Em Eu Vou, Tu Vais, Ele vai, aquilo que Erpenbeck consegue é precisamente fazer-nos cruzar esse conhecimento. Cruzam-se o papel do académico solitário e inadaptado com a cultura e os hábitos adquiridos ao viver do outro lado do muro em Berlim Leste, esta vida do outro lado do muro com a situação de inadaptação, a inadaptação de Richard com a dos refugiados, a sensação de desfasamento com o local onde se encontram, este desfasamento com o desfasamento da lei e da realidade, tal como o desfasamento entre as narrativas de rejeição e as possibilidades atribuídas, como a crítica de não trabalharem com a impossibilidade legal de o fazerem.

Mas porquê pegar na ficção para contar uma história do presente? Não poderia Erpenbeck ter simplesmente composto uma reportagem sobre os seus próprios encontros com refugiados? Mas, nas falhas e impossibilidades do jornalismo, trabalha a ficção. Com as características certas, o real ganha sentido com a ficção, e Erpenbeck precisava da personagem de Richard, da sua solidão, da sua história de vida e da sua perspectiva académica, para contar esta história.

Quem quiser desacreditar a tese ensaiada poderá sempre dizer que a realidade não condiz com o ficcionado por Erpenbeck, mas não faria exactamente o mesmo caso se tratasse de uma reportagem assente no real? A subjectividade de tudo o que se relata permite sempre que quem esteja céptico se refugie na suposta falsidade do relator. Porém, a ficção de Erpenbeck não necessita dessa prova factual, ela é assente naquilo que se parece com o que vemos passar-se lá fora. E, de certa maneira, Erpenbeck não dá o sermão para quem se situa no campo oposto ao dela mas para quem, como Richard, se afastou e desconsiderou o assunto como não se referindo a si próprio. São estes que são desafiados a agir.

Nesse sentido, Eu Vou, Tu Vais, Ele Vai é literatura manifesto, daquela que estimula a acção e tenta que mudemos a nossa percepção sobre o que nos rodeia. Não oferecendo soluções para os problemas estruturais, o livro incita ao convívio com o diferente, ao espaço para conhecer os outros, que não podemos simplesmente temer. Também nós, leitores, somos parte do projecto de Richard e, portanto, do de Erpenbeck. Também nós fazemos perguntas e apreendemos as respostas, e, como Richard, resta-nos ficar tocados, para pôr mãos à obra.

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