“Pequenas Coisas como Estas”, de Claire Keegan, tem o brilho de uma jóia preciosa

por Mário Rufino,    24 Fevereiro, 2023
“Pequenas Coisas como Estas”, de Claire Keegan, tem o brilho de uma jóia preciosa
Capa de “Pequenas Coisas como Estas”, de Claire Keegan (ed. Relógio d’Água)
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Deixe-me começar pelo fim. 
O leitor termina a leitura com a ideia de que não faltou nenhuma palavra por dizer nem houve esbanjamento. 

“Pequenas Coisas como Estas” (Relógio d’Água) é um organismo bem calibrado, onde o dito tem a dose certa e o não-dito pede um leitor atento. O diabo está nas entrelinhas. 
Olhe para lá da superfície, aprofunde, veja a corrente interna do texto, o indizível.  
Claire Keegan (Wicklow; 1968) conta-nos a história de Bill Furlong, um comerciante de carvão casado com Eileen e pai de cinco filhas.  

Uma usual entrega de uma encomenda num convento da sua vila vai pôr a descoberto hábitos desumanos. Essa descoberta irá obrigá-lo a confrontar o seu próprio passado. Estamos no Natal de 1985, na cidade de New Ross, em Wexford. 
O passado de Furlong não o amargurou. É um homem terno, melancólico, capaz de usufruir das pequenas coisas e, principalmente, do crescimento das suas filhas. É um homem sem ambições de maior, se tirarmos o principal: ser um marido presente e um pai atencioso. 

Ele conhece os rumores sobre aquele convento, sabe das raparigas de má fama que trabalham na lavandaria, as raparigas grávidas ou com bebés de colo, sem marido. Mas não sabe o que acontece aos recém-nascidos. 
Apesar de ser uma obra de ficção, isso não conforta o leitor. A história tem raízes na realidade. 
Numa nota no fim do livro, a autora fala das lavandarias de Madalena, situadas nos conventos, onde restaurantes, pensões e casas bastadas lavam a roupa: 

“A última lavandaria de Madalena só foi encerrada em 1996. Não se sabe quantas raparigas e mulheres foram escondidas, aprisionadas e obrigadas a trabalhar nessas instituições. (…) 
Desconhece-se quantos milhares de bebés morreram nestas instituições ou foram adotados nos lares para mães solteiras. (…) Estas instituições eram geridas por freiras e financiadas pela Igreja Católica, em parceria com o Estado irlandês.” 

Entre as fissuras da desgraça, passa a bondade de Bill Furlong.  
Claire Keegan tem no seu personagem a negação do determinismo social. Ele tinha tudo para correr mal, tudo para a mãe entrar e não sair da lavandaria do convento, tudo para ele nem ter história para contar. A bondade da Sra Wilson e a sua transformam vidas para melhor. Ele dá a mão a quem precisa. 

A estrutura fluída, com regressões ao passado de Furlong, sublinham a resiliência e bondade intrínseca deste personagem. Mesmo as suas interrogações sobre caminhos que não tomou, hipóteses que não explorou, valorizam a sua vida cheia de pequenas coisas, que ele tanto valoriza. 

Vai ao arrepio da corrente e forma-se como o ser humano que gostaríamos de ser. Cada palavra tem o seu valor, cada frase o seu equilíbrio, e o livro resulta num espécime invulgar de concisão e beleza. 
É muita qualidade concentrada em cerca de oitenta páginas. 

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