“Divino Amor”: a rave evangélica de Gabriel Mascaro foi até agora o melhor do Festival de Berlim
Que hipótese transcendental poderá existir entre filmes tão diversos como Divino Amor e Ordet/A Palavra? E entre eles e um divinal jogo de futebol do Benfica?
Veio do brasileiro Gabriel Mascaro, mas sempre em português, o nosso momento mais emotivo do festival de Berlim. E logo num filme com o título sugestivo de Divino Amor. A fita veio integrada na secção Panorama, apenas algumas semanas depois da boa receção em Sundance. Mas só com muita ousadia da programação a potência erótica e temática do cinema do cineasta pernambucano teria lugar reservado na Competição. Mesmo tratando-se da sugestiva 69.ª edição, por sinal dominada pela liberdade e paridade feminina. Pois em Divino Amor o sexo é forte. E forte e sensual no sentido da total naturalidade com que Mascaro sempre o encarou nas anteriores ficções, Ventos de Agosto (2014) e Boi Neón (2015).
Há mesmo um prolongamento dessa sensualidade em Divino Amor, desenhada na inteligente ligação com o crescimento (quase) global da religião evangélica no Brasil. De resto, canonizada de forma oficial pela histórica frase “Deus acima de todos” proferida por Jair Bolsonaro no discurso de tomada de posse na Presidência.
Na verdade, parece até existir um lado de futurologia nesta narrativa utópica que decorre em 2027, num país que trocou a celebração do Carnaval pela celebração do ‘Divino Amor’, uma espécie de jura eterna proferida ao relento no seio de uma mega rave evangélica, sempre em tons de rosa e azul, como de resto todo o filme, em que milhares se juntam para para dançar em êxtase a jura de amor eterno e a dádiva divina do amor. E para quem sofre de dúvidas amorosas ou incertezas, existe mesmo um ‘drive in’ ecuménico onde um pastor de serviço auxilia numa prece com música celestial mesmo sem o crente sair do automóvel.
Neste futuro tão próximo em que a palavra de Deus quase recebe a dimensão de um Big Brother, o controle de natalidade é feito por um scan de DNA como sucede com os detetores de metais no aeroporto. E o sexo como prazer é mesmo desaconselhado, aconselhando-se sempre como um meio de reprodução. E aí alguns membros do culto ‘Amor Divino’ sejam mesmo ‘facilitadores’ para conduzir a relação sexual com cada um até ao êxtase para que apenas o orgasmo seja consumado com o parceiro devido.
A mega estrela brasileira Dira Paes é Joana, uma mulher que deseja muito ter uma criança e tenta mesmo os métodos mais exóticos com o marido. Inclusive um sistema oriental em que o parceiro fica de pernas para o ar ao mesmo tempo que recebe uma radiação no pénis. Pode parecer contradição ela trabalhar na secção de divórcios de um cartório, só que investe todo o seu empenho para dissuadir os casais de concretizar o desenlace. Ao descobrir que está grávida e percebendo que não foi do marido, nem de nenhum dos membros do Divino Amor, instala-se a dúvida de um verdadeiro Amor Divino. Não só a dúvida dela, como também a dúvida do marido, do pastor e de todos os crentes. Isto antes de suceder o milagre.
Caso não tivesse revisto no serão anterior a nova versão restaurada em 4k de Ordet/A Palavra, o clássico de Dreyer, em 1955, num ecrã IMAX dentro da secção Berlinale Classics, de resto, uma sessão há muito programada no nosso plano pessoal, talvez nos escapasse esta analogia do milagre diante dos crentes que não acreditam. Ou talvez não. Desde logo porque são até diversas as atrações destes dois filmes, apesar de tudo, tão díspares em estilo e época.
É que também no clã da Quinta Borgen, o fervor religioso do ‘louco’ Johannes é descreditado sobretudo por aqueles que têm fé; os mesmos cristãos que esgrimem argumentos adversos entre os protestantes, ao ponto do casamento entre dois jovens ficar comprometido.
E será talvez essa dúvida o ponto mais relevante desta obra-prima do cinema, e considerada por Paul Schrader talvez o ponto mais alto da transcendência no cinema, tão bem descrita na sua obra Transcendental Style in Film, a par do cinema de Ozu, Bresson, para além de Dreyer, naturalmente. Mesmo que o momento do ‘milagre’ seja aquele em que o cinema, por muitas vezes que se veja o filme, adquire uma dimensão superior. É isso que nos transcende.
O mesmo sucede em Divino Amor, ressalvadas as devidas distâncias e vontade do realizador, que nos confessou não ter equacionado essa analogia. Desde logo porque em ambos os casos é o fervor religioso que torna cegos os mais crentes diante dessa coisa chamada milagre.
Não só estes dois filmes separados por bem mais de meio século partilham essa inesperada dimensão de proximidade transcendental, como foram vistos de forma acidental em menos de 24 horas. Mas não nos ficamos por aí. É que o mais incrível é que antes de entrar na sala seguíamos de ouvido colado à rádio digital um jogo de futebol, igualmente divinal, aquele que aconteceu ontem, dia 10, entre o Benfica e o Nacional com o resultado transcendente de 10-0 que se sabe. Ia na altura o resultado em 7-0 quando ficamos sem rede dentro da sala. Sendo que a dezena de tentos final só veio confirmar essa transcendência, bem como os adornos de ter sido concretizada no dia da homenagem ao eterno nº 10 da Luz, Fernando Chalana, e com o atual 10, Jonas, a marcar o 10.º golo. Sim, acabou por ser uma tempestade perfeita. Ou seja, um ‘quase milagre’.
Artigo escrito por Paulo Portugal, em parceria com Insider.pt