Entrevista. Capitão Fausto: “Na impossibilidade do dia seguinte ser claro, há que inventar algo para ser bom”
“Até que fim” A Invenção do Dia Claro (ler crítica), dos Capitão Fausto, já chegou e trouxe, consigo, uma justa alusão à obra homónima do artista mais transversal e multidisciplinar do nosso país, o Mestre Almada Negreiros, PIM!
Quem já ouviu o álbum e quiser complementar a experiência com a leitura do livro, poderá encontrá-lo fácil, segura e gratuitamente na biblioteca digital disponibilizada pelo site do Instituto Camões. Não há desculpa, portanto! Aliás, vale a pena frisar que o design da própria capa, desenvolvido por Vítor da Silva, acaba, também, por estabelecer essa ponte com o modernismo português. Mas vamos por partes. O livro do Almada oferece-nos alguém que ― enquanto tenta perceber e ver o mundo “com os olhos da cara”, o lugar certo para as palavras (essencialmente), os homens e as mulheres, a luz e sombra das coisas enquanto nos alegramos e entristecemos ― vai interceptando directamente a sua mãe, tal como se lhe estivesse a contar a sua experiência de encontrar o seu lugar no mundo entre as suas gentes. Se formos, por essa via, tentar perceber os paralelismos entre o álbum e a obra, o mais óbvio que nos virá à mente será mesmo o tema Faço as Vontades.
Para Domingos Coimbra, o baixista, essa alusão faz sentido “embora, nessa música, eu ache que a ideia de mãe apareça, se calhar, como uma pessoa à parte da história que está a ser narrada. É quase o momento de adversidade em que a pessoa se encontra e a ideia de querer estar num casulo, porque é nesse casulo que se sente bem e onde recebe todas as directivas para ser a pessoa que é. Mas, também, nas alturas de dúvida, tentar lembrar-se do que são essas relações. Na verdade, quando falei com o Tomás, ele referia-se não à mãe dele, mas mãe num sentido mais vasto: um grupo de amigos, todas essas coisas.” De resto, A Invenção do Dia Claro, dos Capitão Fausto, oferece meia hora de música de várias nuances, camadas e subtilezas, embora venha ao de cima uma simplicidade harmonizadora do som. Simplicidade, essa, pensada mesmo para o Amor, a nossa Vida ou a última do disco, a Final. Há, igualmente, em Faço as Vontades, uma ideia de repetição e circularidade do som ao mesmo tempo que mais processos se desencadeiam.
O segredo, porém, segundo o Domingos, foi encontrar uma forma de, ao invés de se seguir um determinado instrumento, seguir-se a canção. A viagem a São Paulo trouxe os seus frutos, não só pelo conhecimento ou reencontro com outros músicos da nova vaga do Brasil como Tim Bernardes, mas, também, por uma influência da sonoridade do álbum. Houve, por exemplo, a inclusão da roda de choro (cavaquinho, pandeiro e flauta transversal), mesmo que adaptada, obviamente, a uma realidade europeia. Entre músicas com mais espaços entre si, também baladas, influências de Vera Cruz, amores, desamores, o sol e a sombra, as relações e o que é, afinal, tentar encontrar um dia claro neste mundo, assim é o álbum dos Capitão Fausto. Sem mais demoras, até porque nos estamos a alongar, fiquemos, então, com as palavras de Domingos Coimbra, que falou connosco por telefone. Ora leiam!
Começando pelo título do álbum, A Invenção do Dia Claro, que nos leva à obra de Almada Negreiros. Foi escolhido antes ou depois das canções e das letras estarem prontas?
Foi uma decisão tomada depois. Acho que foi uma feliz coincidência. O Tomás já tinha estado, há já algum tempo, com a irmã, a Catarina Wallenstein — se não me engano em Paredes de Coura — a ler uma série de poemas e, na altura, escolheu um roll desse livro. Depois de termos gravado o disco e termos já as canções com as letras ― é uma coisa que nos acontece sempre, o nome do álbum é a última coisa a chegar — o Tomás deparou-se com esse título e encontrou um paralelismo com aquilo que estava a escrever. Não foi o livro que inspirou as letras mas, no entanto — obviamente que a escrita é muito diferente e é uma época completamente distinta, nisso não há uma inspiração directa — mas a verdade é que acabam por existir uns paralelismos, para o Tomás,.entre algumas coisas que o Almada escreveu e algumas deste disco.Foi, por isso, uma feliz coincidência. Acho bastante sugestivo e foi um bocado um roubar de nome. Nós, aliás, ligámos aos netos do Almada, que trabalham num ateliê de arquitectura, para pedirmos autorização, obviamente. Foi, por acaso, bastante engraçado porque eles disseram “claro que sim” e que costumavam ouvir Capitão Fausto no ateliê, foi óptimo. O título fez sentido para nós e, se calhar, também é, ao mesmo tempo, uma pequena homenagem do Tomás à obra.
Esse paralelismo nas letras é, sim, visível. Na obra do Almada, “o menino” interpela directamente a sua mãe enquanto tenta compreender o mundo e as pessoas, os homens e as mulheres, o lugar certo para as palavras e para as coisas. Na música Faço as Vontades, por exemplo, embora possa surgir num contexto diferente, também se evoca essa ideia de mãe.
Acho que sim, que faz sentido. Gostei dessa comparação. Penso que todos os poemas têm um carácter mais íntimo que, depois, passa para uma mensagem generalista. Ou seja, quando estamos a falar de relações humanas toda a gente, de uma forma ou de outra, se identifica com elas. Embora, nessa música, eu ache que a ideia de mãe apareça, se calhar, como uma pessoa à parte da história que está a ser narrada. É quase o momento de adversidade em que a pessoa se encontra e a ideia de querer estar num casulo, porque é nesse casulo que se sente bem e onde recebe todas as directivas para ser a pessoa que é. Mas, também, nas alturas de dúvida, tentar lembrar-se do que são essas relações. Na verdade, quando falei com o Tomás, ele referia-se não à mãe dele, mas mãe num sentido mais vasto: um grupo de amigos, todas essas coisas. Ou seja, alargou um bocadinho essa ideia de mãe, mas é, em parte, isso. Há esses pequenos paralelismos e, nessa música, a única coisa que eu diria é que quando o Tomás faz a referência à mãe, no refrão, é mais um conselho que ela lhe dá para uma situação na qual ele se encontra, eu acho.
Há a integração de novos instrumentos, da roda de choro (pandeiro, cavaquinho, flauta transversal) e, até, a parceria de músicos brasileiros. Essa nova ambiência musical trouxe desafios não só na gravação, mas também na adaptação das músicas ao vivo?
Nós, quando começámos a compor, soubemos que íamos para o Brasil. Foi bem no início do processo que soubemos que era para ir e, basicamente, o que nos passou pela cabeça foi, “não vamos, obviamente, mudar a música que fazemos só porque vamos a um sítio que, na verdade, é diferente do nosso mas que é muito rico cultural e musicalmente.” Não nos queríamos estar a apropriar de uma cultura musical que não é a nossa, e não é mesmo. Gostamos muito, mas não é a nossa cultura musical. No entanto, ao mesmo tempo, achámos que seria uma pena irmos para o Brasil e não bebermos um bocadinho do que por lá se faz. Como estavas a dizer, um amigo do Manel organizou um pequeno ensamble de choro — um cavaquinho, um pandeiro e uma flauta transversal. Quando chegamos lá com os instrumentais, basicamente eles tocaram por cima daquilo que nós estávamos a tocar. Ou seja, ficaram os arranjos e uma roda de choro muito adaptados a uma música mais europeia e, por isso, ficaram ligeiros. Não queríamos dar uma overdose de instrumentação diferente e, depois, quando começámos a gravar e a trabalhar no disco, ele começou a ganhar várias camadas e quisemos, além disso, gravar mais sopro e mais cordas. Naturalmente, a forma como tocamos as músicas ao vivo não é como as gravámos. Há mais linhas que aparecem, mais coisas rítmicas, mais pormenores e detalhes, então, nós estamos a dividir entre as nossas dez mãos coisas que não tocamos na altura e que agora queremos que apareçam aos poucos nas músicas. É um exercício giro voltar a tocar as músicas depois de as gravar e, em alguns casos, tornam-se bastante diferentes porque, durante o processo de produção do álbum, elas mudam em relação ao original. Por isso sim, isso está a acontecer. Estamos a adaptarmo-nos ao disco e não às músicas que fizemos na altura.
Essa ponte com o Brasil é interessante, se virmos que há toda uma nova vaga de cantautores que está a dar cartas: Cícero, Rubel, Tim Bernardes, Castello Branco. Depois, há a questão do Brasil ter uma cultura musical riquíssima, extensa, que oferece muito por onde explorar. Penso que isso deve ser bastante desafiante para qualquer músico.
Óbvio! Na altura, quando surgiu a oportunidade de gravarmos fora do país, foi um bocado unânime entre todos que, se houvesse um sítio para ir e ter uma experiência diferente, esse país seria o Brasil — por imensas razões. Há uma proximidade cultural, embora estejamos muito distantes há uma proximidade cultural e linguística que nos faz ter muitas semelhanças.Claro que também temos muitas diferenças e essas também nos interessam bastante . Basicamente, é isso que estás a dizer. Temos uma relação já de amizade com o Tim Bernardes que dura há uns três anos. Vamos trocando músicas e vamos falando, cada um do seu lado do atlântico. Sempre que eles vêm cá , o Bernardes e O Terno, estamos com eles e quando estivemos lá, estivemos com eles também. Essa nova cultura musical emergente e rica que estavas a falar, nós presenciamos-a um bocadinho em primeira mão porque lá fomos. Não em primeira mão porque, na verdade, já dura há algum tempo e o Brasil tem um mercado muito maior para música alternativa e para música brasileira. A música brasileira é, essencialmente, toda cantada na língua e há, também, muito apoio para toda a cultura de música brasileira de todos os géneros. Mas chegamos lá e fomos ver um concerto d’O Terno num antigo cinema, o Cine Joia. Foi incrível, estava cheio. Depois fomos, também ― até me fez lembrar as tardes da ZDB [Galeria Zé dos Bois] no terraço, onde há concertos e está a malta a beber copos num ambiente descomprometido — mas fomos também passar uma tarde à Selo Risco, que tem uma data de bandas interessantes como o Pedro Pastoriz e Tim Bernardes. Tem uma data de malta interessante e estavam todos a tocar. Quando demos por nós, estávamos no meio de um bairro qualquer, em São Paulo, num jardim, num quintal, a ouvir uma data de bandas inacreditáveis. Foi uma troca muito interessante e riquíssima. Ou seja, para além de ter sido uma experiência incrível termos lá gravado as músicas, foi também muito rico termos conhecido outros músicos e, especialmente, músicos que fazem música que se aproxima um bocadinho à nossa, o que é muito interessante. O Brasil fez todo o sentido.
Como foi para vós assumir, pela primeira vez, o controlo total do processo de criação? Porque este é o primeiro álbum em que a banda assina as misturas finais, certo?
Exactamente, isso é o lado técnico da coisa. No ténis acontece um bocado isso. Estamos a ver o Federer ou o Djokovic a ganhar torneios e, na verdade, existe esse culto só do jogador . Também existe muito, salvo raras excepções, o culto da banda. Há muitos processos pelos quais se passam na altura de se fazer um disco. Há pessoas que podem fazer tudo por elas (que podem gravar em casa) há pessoas que vão gravar no estúdio, que têm um produtor, ou seja, muitas vezes essas partes são postas de fora. A verdade é que nos últimos anos trabalhámos sempre com o Nuno Roque, ele misturou connosco e, em certa medida, sempre nos ajudou a produzir as nossas canções. Mas, agora, foi a primeira vez que tivemos o total controlo do processo de mistura e produção. Quanto à produção, já estávamos habituados a fazer, mas misturar um disco é muito técnico e há pessoas que dedicam uma vida inteira a misturar coisas. No nosso caso ― embora seja um disco curto, são 30 minutos ― existem muitas camadas, pormenores e detalhes, Então, pôr tudo no sítio, para nós, sem termos o lado mais técnico da coisa, foi um processo de aprendizagem muito grande e, se calhar, a parte mais difícil que tivemos no processo do disco. É mesmo aquela questão de se ficar um dia inteiro a ouvir o som de um instrumento, durante 10 segundos, e pô-lo no sítio certo. É um processo um bocadinho doloroso mas, ao mesmo tempo, de uma aprendizagem muito interessante. Acho que sentimos orgulho por termos conseguido fazer essa parte toda por nós próprios. Ao princípio estávamos um bocado cépticos de a fazer mas, a verdade, olhando agora para trás, não poderia ter sido de outra forma. Foi mesmo um processo de aprendizagem, de ir estudar, de saber como se faz, de analisar um bocadinho mais a esquelética daquilo que queremos e conseguir traduzir isso nas coisas que queremos fazer. Acho que há um lado da mistura que tem muito de ouvido, ou seja, não é preciso ser-se muito bom tecnicamente para misturar, basta ter bons ouvidos e ver o que passa bem e o que passa mal. Mas, ao mesmo tempo, há coisas às quais é impossível escapar, coisas que nós gravámos e estavam todas desengonçadas. Depois, é preciso estar ali com corte e costura. Passámos por essas fases todas e, no passado, sempre tivemos quem fizesse isso por nós. Eu até digo de forma heróica e, muitas vezes, não levam, se calhar, o mesmo mérito que leva a banda. Desta vez resolvemos fazer isso por nós próprios e acho que ficámos muito contentes com o resultado.
Embora o álbum tenha imensas camadas, musicalmente, não deixa de haver uma simplicidade que harmoniza e vem ao de cima. Concordas? Essa é uma ideia que vos agrada? Oferecer algo mais complexo com uma roupagem simples?
Acho que sim, pelo menos na nossa ideia. Isso é, obviamente, subjectivo, cada pessoa terá a sua opinião. Mas, quando chegámos ao final, sentimos que este disco, embora em momentos estejam a acontecer coisas muito complexas, respeita um bocadinho mais o espaço de cada coisa entre nós. Ou seja, não estou a dizer que estamos a fazer algo melhor do que outra que já fizemos mas a Faço as Vontades, por exemplo, é uma música à base de uma ideia que é repetitiva. Está sempre ali, numa ideia circular, mas estão a acontecer algumas coisas ao mesmo tempo. O que conseguimos foi arranjar uma maneira fixe de harmonizar as coisas umas entre as coisas, conseguir que se resumisse a seguir a canção. Mais do que estarmos durante muitos momentos a seguir este ou aquele instrumento, estamos a seguir a canção. Por exemplo, o Amor, a nossa Vida ou a última do disco, a Final, foi mesmo um exercício de simplicidade que quisemos fazer. Isso é interessante. As coisas que têm mais espaço muitas vezes são as mais difíceis de trabalhar. Como são mais abertas, precisam de uma sensibilidade um bocadinho diferente e nós, aí, acabámos por respeitar os espaços e os silêncios ― isso também é interessante. Nunca pensei que fossemos fazer coisas neste género, se calhar bem mais calmas, mas a verdade é que foi uma experiência interessante ir por esse lado e produzir as canções dessa forma. Saber que, às vezes, o silêncio e o espaço das coisas também contam. Chega-se lá de forma complexa mas o resultado final é simples e eu acho que isso é bom.
Talvez seja uma ideia já batida, mas coloco a questão à mesma! Têm a noção de que, embora, haja um ímpeto bastante íntimo nas letras que advém mais de estados de espírito, também acaba por existir em vós e nas vossas músicas um tipo de sentimento que é bastante geracional?
Percebo o que estás a dizer. Não sei se é geracional, mas acho que é mesmo quando se está a falar de relações humanas e experiências particulares que passam para algo com que as pessoas sintam empatia. Acho que é um bocado a histórias das canções, das peças de teatro e do cinema. Ou seja, são experiências particulares, histórias contadas num ângulo específico com as quais nós nos conseguimos relacionar porque, a dado momento da nossa vida, passámos por coisas parecidas. E, se calhar, essa coisa geracional, não diria que é, exactamente, geracional, mas mais aquela situação que a pessoa está a escrever e, se calhar, já me aconteceu de forma parecida. Ou, então, um ponto de vista que a pessoa está a dar para uma determinada situação, determinado problema ou questão e me faz pensar nas coisas de uma maneira diferente. Se é geracional é porque nós fazemos parte de uma geração e, se calhar, as pessoas dessa geração se identificam com aquilo que estamos a dizer. Mas acho que, no que diz respeito a relações humanas, são coisas civilizacionais, não é? Existem desde sempre, amores, desamores, problemas, fatalismos, optimismos, pessimismos. Não concordas?
Coloquei a questão porque, na verdade, e falo porque devemos ter, mais ao menos, a mesma idade, a nossa foi uma geração ( não falo por todos, mas uma grande parte sim) que demorou a encontrar o seu lugar. Podemos dizer, até, que ainda não o encontrou por completo. Isso aconteceu por vários motivos. Passámos o auge da crise, muitos ficaram mais tempo dependentes do que seria esperado. Fomos, por isso, rotulados de burgueses quando, também, não havia lugar para nós. Isso levou-nos a pensar no futuro, nas nossas aspirações, frustrações, desejos e anseios, naquilo que valeria a pena e não, com uma maior profundidade. É um bocado como o menino do Almada, no livro, que tenta compreender o que vê e o seu lugar no mundo.
Sentes que estamos mais abertos a estímulos? Ou seja, que devido a todas essas razões que estavas a falar, essas dificuldades inerentes, que hoje em dia sentimos as coisas mais à flor da pele e estamos mais abertos a estímulos, é isso?
Exacto
Pronto. Eu não tinha pensado nas coisas dessa forma mas é uma maneira interessante de as analisar. Falo por mim, mas acho que uma coisa que o Tomás fala nas letras das músicas é, também, encontrar o optimismo no fatalismo das coisas. Essa é uma mensagem com a qual todos se podem relacionar . Quantas vezes nos deparamos com dificuldades e problemas — parece que o mundo não vai andar para a frente e tudo corre mal — mas ao mesmo tempo acho que também se lida com a ideia de inventar um dia claro. Ou seja, na impossibilidade do dia seguinte ser claro, há que inventar qualquer coisa de novo para ele ser bom de qualquer maneira. Há que saber lidar com frustrações, problemas pessoais, coisas que aparecem nas nossas relações com os nossos amigos, no nosso trabalho, na nossa vida pessoal e, também, perceber que há lições boas a tirar das coisas boas mas também das coisas más. Saber como melhorar com isso. Na leitura que eu faço das letras do Tomás, às vezes dá um bocado essa ideia.