Entrevista. José Ribeiro, da editora Ulmeiro: “No dia em que deixarmos de sonhar é porque estamos mortos”
“O difícil comércio das palavras” é um verso que Eugénio de Andrade envia a José Ribeiro num simpático postalinho. José aproveita-o para o título de um dos seus livros e podia muito bem ter sido o título desta entrevista. Afinal, é disto que se trata toda a conversa: de como não é fácil para a editora independente Ulmeiro sobreviver no meio das grandes editoras. O dono da livraria (que também é editora), José Ribeiro, diz tudo: A independência paga-se.
Aceitada a confusão permanente da livraria, a Ulmeiro celebra 50 anos com muitas surpresas. Numa conversa gravada no dia mundial do livro, dia 23 de abril, festeja-se a literatura junto de um alfarrabista que conta como é “andar ao papel” em tempo de ditadura.
Livrarias no caminho
Mesmo apesar de fazer piadas sobre dar aos livros o mesmo destino que Ray Bradbury descreve no livro “Fahrenheit 451” – queimá-los – José Ribeiro tem um objetivo claro: “preservar a memória, não destruí-la”. São muitas as livrarias que fizeram o caminho de José, mas o número de livros que lhe passaram pelas mãos é incontável.
Preservar a memória é o que faz há meia década na Ulmeiro, em Benfica, e que começou com a editora Obelisco, na Amadora. Também quando José ajudou a fundar a Assírio&Alvim, em 1972, com Assírio Bacelar e João Carlos Alvim, o objetivo era imortalizar a palavra. O problema é o mesmo há décadas: é muito difícil manter as livrarias saudáveis.
No dia mais simbólico possível para conversar com um grande nome entre os livreiros, José aponta que “há muita dificuldade em ultrapassar as carências que as livrarias e as editoras passam”. Num país onde “muita gente anda distraída”, que deixa passar muitos e bons autores, onde há “demasiados programas de futebol na televisão”, José Ribeiro diz que “pouco se fala de livros e cultura”. Para alguém que também é amante de futebol, a receita que deixa é fácil de seguir: retirados cinco minutos aos debates de futebol, aproveitava-se para promover os livros – desde que os intervenientes não sejam “aquele pessoal chato, intelectuais”.
Desde pequeno que José aprendeu a questionar-se. “Mas porquê? Porquê eu?” Há coisas em que não precisa de se questionar por serem tão claras: “No dia em que deixarmos de sonhar é porque estamos mortos.” Um dos seus sonhos era o de uma aldeia do livro, algo em que pensou há 40 anos, juntamente com o arquiteto, professor e escritor João Pinto Coelho, o editor João Carlos Alvim e muitos outros. Não chegaram a conseguir. Quando José foi a Alcântara, à livraria Ler Devagar, no LxFactory, apresentar a ideia da aldeia do livro a José Pinho, este não se mostrou interessado. Passado algum tempo, José Pinho avança com a ideia e cria o FOLIO – Festival Literário Internacional de Óbidos. De acordo com José Ribeiro, chegou mesmo a ouvir no FOLIO José Pinho dizer que a ideia era de José. Rancores não são para o dono da Ulmeiro até porque a ideia era tudo ser muito maior. Fora de Lisboa, claro, numa aldeia abandonada, com turismo rural e de habitação. E o mais importante: uma casa do bibliófilo, da poesia, da BD, do livro técnico. A ideia fica em aberto e “logo se vê”.
Uma forma de resistência
“Isto é uma história improvável.” – é o que, poeticamente, José Ribeiro responde à pergunta de porquê abrir uma livraria num tempo em que tudo era controlado. Nessa altura, foi “uma forma de resistência”. Aliás, José Ribeiro diz ter começado a resistir logo que nasceu. “Nas condições em que nasci, estaria condenado a uma vida no campo. Nasci numa aldeia com uma casa de família relativamente pobre, pai operário, mãe camponesa…numa casa sem livros.” Puxando pela memória, na verdade, naquela casa onde ninguém sabia ler, havia dois livros: “E isso é o mistério que ainda não consegui perceber.” Aqueles dois livros foram as primeiras leituras de José. O primeiro era a “Viagem ao centro da Terra”, de Júlio Verne. O outro livro que estava misteriosamente em casa era o “Décadas da Ásia”, de João de Barros, um livro que começou a ser publicado em 1552, onde está registada a presença dos portugueses nos países asiáticos, através de relatos de soldados, marinheiros e comerciantes, à medida que a expansão portuguesa se consumava. Há várias edições deste livro, mas para um clássico aparecer na casa de José, terá de ter sido deixada pelo avô ou trisavô de José. É tudo ainda um grande mistério para José e assim vai ficar.
José nasce em 1942, perto de Ourém, e a paixão pela leitura chega-lhe de várias formas: as professoras dão-lhe a ler a poesia de Augusto Gil e de Guerra Junqueiro; as pessoas que chegam às aldeias através das bibliotecas itinerantes da Fundação Gulbenkian – como os poetas António José Forte e o amigo Herberto Hélder – também ajudaram a moldar o gosto de José.
Saltando muitos anos, José decide estudar e passa pela Faculdade de Letras da Universidade Nova. No curso de Línguas e literaturas modernas, na variante de Estudos Portugueses, conheceu muita gente e fez muitas mais cadeiras que as que eram pedidas. Bebia do conhecimento. Tudo para ficar perto dos livros.
Ulmeiro perene
Uma nova livraria nasce em Benfica em 1969. O nome posto à livraria – Ulmeiro – vem das árvores que ladeiam os passeios da zona. A folha desta árvore é caduca, ou seja, cai no inverno. Se formos por aí, o trocadilho não corre bem. Esta livraria é bastante resistente. Nos últimos anos, foram algumas as vezes que os donos anunciaram “cortar a árvore”, fechar a loja. No entanto, com muito esforço, foram mantendo aberto o número 13 da Avenida do Uruguai. A Ulmeiro encontrou bom solo na rede social Facebook e aí também vende livros. Com o adubo que vem do apoio dos amigos da livraria, a Ulmeiro vai apostar de novo na edição.
José não tem dúvidas: “Quando se é independente paga-se o preço da independência.” E muito lutou esta livraria para manter a sua independência e, mais do que isso, a liberdade – a da loja e a de todos os que queriam ler. Faltou dizer que o ulmeiro pode viver até aos 600 anos, o que é um bom presságio. Aqui o trocadilho já funciona, afinal, há 50 anos que a Ulmeiro é a única livraria de Benfica.
Lidar com a PIDE
Num dia em que José foi chamado pela PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado), como era habitual, o escritor António Alçada Baptista disse algo que José ainda hoje repete: “Não conheço nenhum merceeiro que tenha aberto uma mercearia por gostar de feijão e nós fazemos livrarias e editoras porque gostamos de livros.” O que Alçada Baptista queria dizer é que se tem de ultrapassar as dificuldades económicas pelo bem da leitura. José Ribeiro percebe muito bem isto.
“Fui sempre militante pela liberdade de expressão.” José Ribeiro começa esta frase com um convicto “evidentemente”. Foi sempre contra a apreensão de livros, contra a censura e, sendo dono de uma livraria nos anos 70, a PIDE não se poupava nas visitas. “Sofremos muitas investidas”, diz, um pouco cabisbaixo ao lembrar-se destes tempos, “as visitas eram pelo menos semanais.”
“Foi de facto uma longa luta, mas muitas vezes conseguimos ganhar.”, lembra José, ganhando a vivacidade de novo. A Ulmeiro estava precavida contra as rusgas. Mesmo apesar de “a inteligência dos senhores ser limitada”, a livraria tinha alguns esconderijos para os livros e muitos deles nunca foram descobertos. “Havia sempre formas de contornar esse problema”, conta José. Fosse numa cave secreta tapada por estantes ou dentro dos aquecedores, os “livros proibidos” estavam a salvo.
O livro, e a cultura lá dentro, eram uma ameaça ao regime. O conhecimento não se podia propagar. E de que livros vinha a PIDE à procura? “Havia sempre livros com hipóteses de serem proibidos. Uns pelos nomes dos autores, outros pelo tema. Era completamente absurdo. Não havia nenhuma lógica. Apreendiam tudo o que era acabado em «ine»: Lenine, Estaline, Racine… Tudo o que era sobre marxismo, socialismo. Mesmo “O manual de betão armado”, um livro escrito por engenheiros sobre as características do cimento, só porque tinha a palavra «armado» no nome foi levado. Livros de poetas, como Manuel Alegre, andavam sempre debaixo de olho da censura.
A Ulmeiro era (e é) também editora e distribuidora. Era assim uma tripla ameaça ao regime. José Ribeiro não só vendia livros como também os fazia nascer e distribuía. Havia polícias da PIDE que viviam perto da Avenida do Uruguai, em Benfica, e que avisavam José quando sabiam que a Ulmeiro ia ter visitas que vinham confiscar livros: “As pessoas podem ser melhores ou piores, mas o sistema era o sistema.”
A semana em que se restaura a liberdade
Se antes do 25 de abril a Ulmeiro perdia algumas batalhas, depois da revolução a guerra foi ganha. José Ribeiro batia-se muito contra o regime. Foi processado antes e depois do 25 de abril. Na origem da queixa estava a publicação de um livro chamado “Massacres na Guerra Colonial”, um tema que não era aquilo que o Estado Geral das Forças Armadas queria ver falado. José tem pena de que a Guerra Colonial ainda seja tão tabu: “Já era tempo de pessoal mais jovem ter mais informação, estudar, enquanto muitas testemunhas ainda estão vivas.”
Os cravos vieram acompanhados da liberdade de expressão, no entanto, José acha que ainda “não se discute suficientemente as coisas que correram mal. A parte boa é a questão da liberdade. Quem nasceu depois do 25 de abril não tem ideia do que é viver privado de liberdade. Mais grave ainda, são os jovens, os rapazes sobretudo, estarem na iminência de ir para a guerra.” Na altura da Guerra Colonial, José arranjou maneira de ficar em Portugal. Foi para Alverca trabalhar junto dos aviões, na OGMA – Indústria Aeronáutica de Portugal. Aí o lado de resistente sobressaiu e a consciência fazia-o não levar a cabo as tarefas que lhe eram dadas. José passou aí quatro anos “a vegetar”, em que acabou por ensinar português aos jovens. Foi também aí que conheceu a mulher, Lúcia.
Quem vai à livraria de Benfica vê as cabeças dos donos por entre as pilhas e estantes cheias de livros. Isto sempre foi assim. A livraria sempre teve muitos amigos e eles vinham regularmente pôr a conversa em dia. Um desses amigos era José Afonso, mais conhecido como Zeca Afonso, o cantor e compositor conhecido por músicas como “Grândola, Vila Morena”. Desde o início da Ulmeiro que Zeca vinha até Benfica, cantava na livraria e trazia escritores e músicos consigo. Era uma amizade frutífera. Durante a semana em que o 25 de abril vingou, Zeca tinha estado a viver na casa de José Ribeiro, para se precaver de “ir dentro” tão próximo do 1º de maio. Setúbal era a origem de Zeca, mas na noite de 24 para 25 de abril, dorme em casa de um amigo de José, que trabalhava na Ulmeiro. De manhãzinha, mal as notícias do golpe de estado chegam, uma multidão junta-se na Ulmeiro, desde o encadernador Sr. Soares com uma rolha ao pescoço a Manuel Hermínio Monteiro, editor da Assírio & Alvim. José e Zeca arriscam e juntam-se à revolução na Baixa de Lisboa: “Recordo-me de estar com ele em frente àquele jornal de direita, o Diário da Manhã, e quando comecei a ver o pessoal a atirar os documentos, as pastas, pela janela fora, recordo-me de dizer para o Zeca «Opá, isto parece que não está a começar bem» porque é óbvio que nem que fosse por razões históricas, estas coisas não são para destruir.”
Ao contrário do que pode parecer, mal se dá a revolução, as pessoas não estavam sedentas por ler. José, como quem vende livros, diz que na altura “houve muita gente que veio à procura de informação e livros que não lia habitualmente, mas o livro proibido foi como o livro da moda.” Deixando de ser proibido, o livro deixa de ser tão apetecido.
Festa pelo meio século
A Ulmeiro ganhou uma grande notoriedade quando Marcelo Rebelo de Sousa, atual Presidente da República, visitou a livraria. Muitos habitantes da zona nunca lá tinham ido e passaram a entrar no número 13 nem que seja para conversar. Nesse período de imensas notícias, muita gente conhecida veio ver a livraria. O humorista Ricardo Araújo Pereira também se deslocou a Benfica (terra do clube que adora) e comprou “uma daquelas enciclopédias que as pessoas dizem que já não se usam por causa da Internet.”
Mesmo depois dos períodos de grande afluência, a poeira assenta e a calmaria volta à livraria. Quando parece que já ninguém se interessa pelos livros, a Ulmeiro continua a vir respirar à superfície. Este ano, para celebrar o meio século, o plano de festas inclui voltar a editar livros e voltar-se de novo para a impressão de posters. Em março, a Ulmeiro publica o policial “Traga uma Orelha de Pedro Sanches”, de Jacinto Rego de Almeida, e mais alguns títulos vão sair com a marca “Espaço Ulmeiro”. Um deles vai ser o “Sete Cartas a um Jovem Filósofo”, do professor Agostinho da Silva, um livro que “devia estar no Plano Nacional de Leitura”, muito na linha da escrita de Ruben Fonseca. As pequenas tiragens vão estar sempre na mente de José.
A Fábrica Braço de Prata alberga a exposição “Isto Anda Tudo Ligado” pelos 50 anos de Intervenção Cultural da Ulmeiro. A exposição já está a decorrer e prolonga-se até 31 de julho. Expondo muitos livros e posters – alguns raros; lançam-se novos títulos; há debates sobre o panorama da literatura atual e não se deixa de ler poesia. O professor Daniel Melo, da Universidade de Lisboa, e o designer gráfico Pedro Piedade Marques estão à frente da iniciativa que levou José Ribeiro a redescobrir a papelada que anda pela livraria.
Esse é um aspeto que espera vir a melhorar: a organização da Ulmeiro. As pilhas de livros ficam bem nas fotos, mas deixam-no triste porque as pessoas não conseguem tirar o máximo da livraria, “que às vezes parece o IC19 em hora de ponta.”
Mesmo apesar de não ter nenhum exemplar dos cinco livros que já publicou, José vai aproveitar o aniversário da Ulmeiro e publicar um novo livro, com o título “Julião e outros textos”, uma miscelânea de prosa e poesia. José tem ainda mais uns livrinhos na manga e cá os esperamos.
Podes ouvir a entrevista completa no programa “Ponto Final, Parágrafo”, da ESCS FM, em parceria com a Comunidade Cultura e Arte, e ficar a saber mais detalhes desta conversa.
Manter a livraria em Benfica, mas também chegar a outros sítios é outro dos objetivos de José: “Isto é uma guerra que não é fácil. Agora, não vai ser fácil desistir.” O desejo que José tem é que o projeto Ulmeiro seja mais estável para que possa ajudar a melhorar o panorama do livro. O “grande drama” é quem vai suceder a José Ribeiro na gerência da Ulmeiro, mas ainda não chegou a hora de pensar nisso.
Salvador, o gato amarelo-dourado, continua a passear-se por entre as pilhas de livros. É ele que chama os clientes, é o elemento que faz levantar a sobrancelha, o Relações Públicas, como lhe chama Lúcia, a mulher de José. Se até agora era o gato que atraía clientela, espera-se que passe a ser a história da livraria e do casal dono da Ulmeiro, especialmente a de José.
O Ponto Final, Parágrafo é um programa da ESCS FM, rádio da Escola Superior de Comunicação Social, feito em parceria com a Comunidade Cultura e Arte.