Entre a Palestina e Israel
Há quase duas semanas, aterrei em Tel Aviv. Entre Jaffa antiga e arranha-céus, lojas de kebabs e mcdonalds, um calor insuportável, praias generosas e um mar quente que não alivia a temperatura, desenvolveu-se uma cidade moderna, bem ao estilo ocidental. Pelas ruas, penduram-se bandeiras LGBT, numa tentativa de encobrir o que se passa para uma lá de uma fronteira que não se aceita e de passar uma imagem de progresso, desenvolvimento e tolerância, num Médio Oriente que os tarda em alcançar. Ser-me-ia possível gostar daquela cidade – as praias agradáveis, as ruas bonitas de Jaffa, os cafés onde se misturam todas as nacionalidades do mundo. Todas menos a palestiniana; todas menos aquela que, até há poucos anos, a habitava. Ser-me-ia possível gostar de Tel Aviv, se não tivesse dormido, na semana seguinte, num campo de refugiados em Belém, se não tivesse acordado com tiros e percebido que o verbo “acordar” nem sequer se pode empregar quando, no fundo, ninguém consegue dormir.
A estratégia é simples: intimidar as pessoas até que estas, por fim, não tenham capacidade psicológica para aguentar; instalar o terror matando ou disparando sobre o joelho dos palestinianos até que estes, por fim, não tenham capacidade física para resistir. Trágico, sinistro, incompreensível, desumano.
A história destes campos, existentes por toda a Cisjordânia, não é meramente a história do terror israelita, é a história da vida de todos aqueles que, diariamente, resistem, da vida dos que me disseram que 70 anos não são nada, que lutam pela próxima geração, que a Europa não percebe nada do significado de paz. A história destes campos é a de quem me pede para não levar a mal o riso excessivo – é o melhor atenuante da realidade –; é a do vendedor de falafel, onde fiz metade das minhas refeições, e a do dono do supermercado que, após perceber que eu rejeitava os sacos de plástico onde ele guardava tudo o que eu acabara de comprar, começou a perguntar-me se os queria antes de os usar; é a das crianças que brincam, felizes, nas ruas e constroem armas com ramos de árvores; é a do taxista que não aceitava, nunca, negociar preços; é a dos pais que ali construíram uma casa, para sempre inacabada, a pensar no futuro dos filhos e que se afundavam em sorrisos depois de eu pronunciar o primeiro olá. É história de quem, no fim, guarda uma esperança inexplicável e uma coragem do tamanho do mundo.
Saí de Belém em direção a Jerusalém, onde me encontro. Após um longo tempo de espera no checkpoint, onde, diariamente, militares israelitas verificam, uma a uma, as identificações de todos os cidadãos, cheguei no fim da manhã de terça-feira. O sol era abrasador, apesar da brisa, naturalmente quente, que se fazia sentir. Deixara a cidade há dois dias e voltara, agora, no início do processo de destruição de casas palestinianas pelos israelitas na parte oriental. No supremo tribunal israelita, venceu o argumento de que a construção das casas, junto ao muro da separação, era ilegal e punha em causa a segurança dos militares. Em Israel, voltou a vencer a segregação, a intolerância, a vontade de continuar a alimentar um conflito que parece só terminar com a destruição de um povo.
No centro de Jerusalém, nada de estranho ou diferente se nota. As ruas, fora da cidade antiga, são largas, limpas, afundam-se em cafés, de estilo ocidental, pequenos supermercados de preços exorbitantes, vendedores de pizza, lojas de marcas conhecidas, pastelarias onde se vendem croissants, inúmeras esplanadas para o turista desfrutar o seu sumo natural e, de vez em quando, aparecem vestígios de um médio oriente escondido pelo cheiro dos vendedores de falafeis e especiarias. Os judeus, nos seus trajes tradicionais, arrastam um grande número de filhos pelas mãos, misturam-se com os turistas, perdem-se entre a quantidade de línguas diferentes que ouvem, entre muçulmanos e cristãos, entre o velho e o novo de uma cidade que consideram sua, uma cidade que carrega o sonho incansável da convivência pacífica de três religiões. A mesma cidade onde ataques aos mais básicos direitos humanos têm lugar, onde estão, neste momento, centenas de pessoas desalojadas, pessoas que assistiram, com os seus próprios olhos, à destruição das suas casas. Sem nada poderem fazer – se permanecem, morrem.
Aqui, no centro de Jerusalém, nada de estranho ou diferente se nota.
Caímos na banalização da história, ao ponto de o muro de Belém se ter tornado num dos sítios turísticos da cidade, com direito à construção de um hotel de nome alusivo. Os cidadãos de Israel, quer habitem longe ou perto da fronteira onde, hoje, se ergue o muro que separa certas porções de território, parecem esquecer a existência palestiniana. Num país onde as notícias chegam diariamente e onde não se impede o acesso à informação, é avassaladora a falta de conhecimento e empatia pela situação vivida a uns míseros quilómetros de distância. As declarações de países terceiros são vagas e inúteis; a União Europeia, numa hipocrisia extrema, coloca bandeiras num território que não reconhece. Os cidadãos palestinianos, particularmente aqueles com quem eu falei no campo, moldam a sua rotina à vontade de Israel. Parece ser este o novo “normal”. Para aqueles que resistem, a história continuará a ser de luta; para aqueles que atacam, a história continuará a ser de construção de colonatos, levantamento de muros e destruição de casas. Para todos os outros, tudo isto parece resultar no esquecimento, na ignorância, na apatia, na normalidade.
A cidade antiga de Jerusalém, desdobrada em ruas estreitas e labirínticas, onde nos perdemos entre mercados intermináveis e lugares religiosos da sua maior importância, transporta, sem dúvida, uma beleza excecional. Mas como gostar deste lugar? Como ter vontade de sorrir a um cidadão israelita que, no seu silêncio, compactua com uma situação insustentável? Como querer descansar na praia de Tel Aviv ou beber café numa esplanada de Jerusalém? Como desejar viajar por um país, rico em história e lugares grandiosos, cujo objetivo é fomentar o terror até que, por fim, consiga vencer? É uma fronteira que não consigo traçar, que me faz terminar como comecei. Ser-me-ia possível gostar de Israel se, no conforto do hotel onde me encontro, não sentisse o quão desconfortável é estar aqui.