Grada Kilomba e os seus “Episódios de Racismo Quotidiano”

por Miguel Fernandes Duarte,    29 Julho, 2019
Grada Kilomba e os seus “Episódios de Racismo Quotidiano”
Capa do livro

O racismo parece estar finalmente a entrar no debate público e, sobretudo, a finalmente ser exposto. Quem desvaloriza a problemática insiste na existência do racismo enquanto comportamento isolado de pessoas isoladas, negando a existência de racismo estrutural e institucional. Negando, a quem dele sofre, o racismo quotidiano a que se é exposto diariamente. Mas os actores negros e afrodescendentes parecem estar, de uma vez por todas, a conquistar o seu espaço no espaço público nacional e a reclamar para si um espaço na história.

Exemplo da ausência desse espaço é o tempo que Memórias da Plantação: Episódios de Racismo Quotidianolivro que fez nascer a artista portuguesa Grada Kilomba, demorou a ser publicado em Portugal. Com uma obra que se estende à performance, encenação, instalação e vídeo, foi no MAAT, em 2017, que Grada viu a sua obra ganhar espaço em solo nacional, depois de presenças em locais como a Bienal de São Paulo e a Bienal de Berlim. Originalmente de 2008, escrito em língua inglesa na Berlim onde ainda reside, só agora, onze anos depois, o livro é editado em português, numa edição espelhada da Orfeu Negro que nos mostra o nosso reflexo. Àqueles que são privilegiados, revela os preconceitos e o privilégio; àqueles que são constantemente desconsiderados pela dita normalidade da branquitude e permanecem escondidos pelo manto da invisibilidade, revela-os.

Uma compilação de episódios quotidianos de racismo, escritos sob a forma de pequenas histórias psicanalíticas, Memórias da Plantação percorre várias subtemáticas dentro do racismo. Das políticas de espaço e exclusão às políticas de corpo e do cabelo, passando pelos insultos raciais, o que temos é uma obra que combina teoria pós-colonial, estudos de branquitude, psicanálise, estudos de género e feminismo negro de modo a desmontar a normalidade do racismo, expondo a violência e o trauma de se ser colocada/o como «Outra/o».

A abordagem psicanalítica e a conceptualização do racismo quotidiano como traumática, enquanto experiência que marca a psique de quem o sofre, são, aliás, o que de mais interessante e inovador este livro nos traz.

No trauma clássico, o passado torna-se presente e o presente passado, e “é esta a função do racismo quotidiano: reencenar uma ordem colonial que se perdeu, mas que pode reviver-se quando o sujeito negro volta a ser posicionado como «o Outro».” O racismo quotidiano não deriva apenas de acções individuais isoladas num tempo e espaço, mas sim de uma cadeia acumulada de acções generalizadas, e de um acumular de episódios que reproduzem o trauma de uma história colonial colectiva. É a reencenação de um cenário colonial, daí, como explica a autora, “a metáfora da «plantação» como símbolo de um passado traumático reencenado por via do racismo quotidiano.” A ferida do passado constantemente reaberta no presente.

O livro, composto a partir de uma série de entrevistas a mulheres negras levadas a cabo pela autora, em Berlim, parte de uma concepção muito interessante de produção de subjectividade e não de conhecimento universal. O racismo é uma experiência apenas palpável por aqueles que são dele alvo, pelo que é essencial que se considere essa subjectividade da parte de quem sofre com ele. Abstrair “os relatos subjectivos das mulheres negras pode facilmente tornar-se forma de lhes silenciar a voz, para as objectificar em terminologias universais“.

Sendo experiências sofridas na Alemanha, um país cuja trágica história recente está inscrita na memória comum de todos, é fácil, para nós portugueses, desvalorizar as experiências descritas no livro como sendo diferentes daquelas do nosso país. Qualquer pessoa que tenha o mínimo de contacto com o assunto sabe, no entanto, que episódios como os descritos neste livro são em tudo idênticos aos relatados por muitos por cá. Também por cá se identifica o sujeito negro como «a/o Outra/o», também por cá é “identificado como o objecto «mau», que personifica todos os aspectos que a sociedade branca reprimiu ou tornou tabu, ou seja, a agressividade e a sexualidade”, como representação de uma cultura primitiva, em necessidade de “civilização”.

Como diz uma das entrevistadas: “O racismo não é um insulto, é acima de tudo como as pessoas olham para ti…”. O sujeito branco vê no sujeito negro o que quer ver, justapõe aquilo que, de indesejável, pressupõe que lá esteja. Além disso, o racismo não é biológico, mas discursivo, funcionando através de uma cadeia de palavras e imagens que, por associação, se tornam equivalentes:

“as/os «Outras/os» nacionais são frequentemente definidas/os como […] imigrantes, e as/os imigrantes são frequentemente definidas/os como imigrantes ilegais. Se as/os imigrantes são ilegais, estão fora da lei; se estão fora da lei, são criminosas/os; se são criminosas/os, são perigosas/os; se são perigosas/os, tem-se medo delas/es; se se tem medo delas/es, tem-se direito a ser hostil ou até a eliminá-las/os.”

As palavras transportam poder e nem sempre nos é evidente como a sua escolha e o uso generalizado de determinadas expressões é opressivo para quem é por elas visado. Como Grada explica no prefácio que acompanha a tradução portuguesa, a língua portuguesa transporta em si várias relações de poder que, por exemplo, não são visíveis na língua inglesa na qual o livro foi originalmente escrito. A língua portuguesa está imbuída de uma imensa violência transportada pela normalidade masculina e branca, e Grada, como mulher negra, vê-se justamente desconsiderada nela, relegada para um lugar de subalternidade. Várias questões, então, foram levantadas no trabalho de tradução francamente complexo que Nuno Quintas levou a cabo com evidente habilidade. No entanto, a opção, visível no excerto acima, de apresentar várias palavras com ambos os géneros acaba por, muitas vezes, não resultar numa leitura fruível. Mesmo não sendo evidente que outra alternativa viável haja para contornar estas questões, a opção de o leitor ser consecutivamente confrontado com estes obstáculos à fluidez do texto não se afigura como sendo a melhor.

Ainda assim, esta é uma decisão gráfica e linguística que está longe de manchar a qualidade e a importância desta obra de Grada Kilomba. A sua chegada à língua portuguesa pode ser tardia, mas o problema que analisa está longíssimo de ser ultrapassado. Nos últimos tempos temos visto chegar traduções de várias vozes importantes neste combate, como Frantz Fanon, James Baldwin ou bell hooks, mostrando a abertura da sociedade ao tema e também o ganhar de consciência dos directamente visados por ele. Grada Kilomba é o elo seguinte dessa linhagem, e é com muito gosto que saudamos a sua presença entre nós.

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