O lado sombrio do Iluminismo e a desumanização dos povos: a raça como construção social

por Lucas Brandão,    22 Abril, 2024
O lado sombrio do Iluminismo e a desumanização dos povos: a raça como construção social
Leitura da tragédia de Voltaire, “O Órfão da China”, no salão de Marie Thérèse Rodet Geoffrin em 1755 / Pintura de Anicet Charles Gabriel Lemonnier
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Quando se aborda o racismo, talvez os primeiros pensamentos se dirijam para o fenómeno da escravatura, onde foram inúmeros aqueles que, provenientes de África, foram submetidos a trabalhos forçados por conta de indivíduos de raça branca. Porém, o discurso da supremacia racial seria mastigado e, por fim, digerido com o fenómeno do Iluminismo (o Século das Luzes), que inspira a produção científica do século XVIII até, a espaços, aos dias de hoje; mesmo com o conceito da raça a ser desconstruído e até anulado já no século XX nas áreas da antropologia, da biologia e, posteriormente, na genética. Não obstante um forte pendor racionalista, onde o primado é dado à razão, a Europa é vista como o continente principal de todo o mundo, mesmo com a recém-independência dos Estados Unidos da América do outro lado do Atlântico. Por mais que o racismo conheça antecedentes mais profundos na história, a época dos Descobrimentos consolidou os preceitos de superioridade racial europeia em relação aos locais das regiões colonizadas.

O argumento da história natural da humanidade é o grande pilar da hierarquização que se começa a desenhar, que começa a propor distinções formais a partir desse lastro. Mesmo que muitos dos filósofos, como os catolicamente céticos Denis Diderot (1713-1784) e, divisivo quanto ao racismo, o profícuo Voltaire (1694-1778), fossem opostos à escravatura, o conceito de raça foi algo que se assumiu de forma a caraterizar a diversidade da humanidade. Não mormente o racismo como distinção social, mas antes a raça como caraterística biológica. Porém, era essa biologia que denunciava os pensadores iluministas, que chegavam a categorizar alguns de sub-humanos, dado o seu alegado comportamento irracional e da sua alegada inferioridade genética. Padrões que permitiam tipificar uma visão antropológica que colocava a Europa como centro do poder e da inteligência humana.

A filosofia iluminista, que germina em si a Declaração Universal dos Direitos Humanos, pensa na humanidade como os indivíduos de raça branca, acabando por, embora reconhecer os cidadãos de outras raças, se fixar numa visão universalista de direitos, liberdades e de autonomia como um todo que é tolerante em relação aos vários projetos coloniais e às relações comerciais de troca de escravos. Estas eram aceitáveis do ponto de vista legal, económico e até religioso, embora a necessidade de apelar a uma constituição de uma declaração de Direitos Humanos possa ser vista como proveniente dos vários conflitos bélicos, mas também da própria escravatura. São vozes como a dos ingleses Richard Ligon (1585?-1662, fez vida na ilha de Barbados) e Henry Neville (1564-1615, foi embaixador de Inglaterra em França), no século XVII, que vão abrindo espaço a compreensões da raça do ponto de vista natural e social, sendo que, no século seguinte, a questão da história natural ganha mais substância. A visão cristã e até a visão cartesiana do mundo, que mastigam o binómio mente/corpo e que não consideram a vertente biológica puramente dita.

Ainda no século XVII, foi um médico francês, de seu nome François Bernier (1620-1688), o primeiro a dividir a humanidade em grupos onde os critérios eram a sua fisionomia, após a sua experiência na Índia durante mais de dez anos. Divorcia-se, por fim, da religião e da linguística e, antes, dedica-se a classificar os seres humanos do ponto de vista biológico, à imagem do que se fez e do que se faria com animais e plantas. Com o século XVIII, acompanhado do estudo da anatomia e da fisionomia dos animais, em especial dos primatas, tanto Diderot, como o seu compatriota, o naturalista Georges-Louis Leclerc, o conde de Buffon (1707-1788), envolvem-se na pesquisa e na investigação sobre a diversidade humana do ponto de vista da história natural. Ambos conotados com os princípios da igualdade e da liberdade que, posteriormente, mobilizam a Revolução Francesa, não esconderiam o orgulho da civilização europeia, que consideravam, implicitamente, superior, mesmo com a ideia presente da unidade de todos os seres humanos.

“Pode-se descer pelos graus quase insensíveis, da criatura mais perfeita até a matéria mais disforme, do animal mais bem organizado até o mineral mais bruto; se reconhecerá que suas gradações imperceptíveis são a grande obra da natureza; se encontrarão suas gradações, não somente nas grandezas e nas formas, mas nos movimentos, nas gerações [reproduções], nas sucessões de toda espécie.”

Conde de Buffon em “Histoire Naturelle” (1749)

De certa forma, é, especialmente, Buffon que aprofunda o estudo da história natural do ponto de vista filosófico. A grande premissa em que se encontra é a de que as diferenças físicas entre eventuais grupos de seres humanos que se distinguem dos outros seriam motivadas por forças dos ambientes naturais e climáticos em que vivem e que, porventura, se poderiam tornar genéticos. A homogeneidade seria, por defeito, branca, e uma vida vivida fora da Europa ou ambulante acabaria por ter um cariz nocivo nessa pessoa. Ou seja, havia uma degeneração humana dessa branquitude desejada, a raça branca. Aqui sim, o conceito de raça, termo que deriva do italiano “razza”, que advém da definição de raças de animais. Ainda no século XVII, o conceito chega ao dicionário da Académie Française como linhagem ou algo que vem da mesma família. Na forma empregue por Buffon, seria mais condizente com as origens comuns e com o fenótipo (as caraterísticas físicas de um dado indivíduo por força da sua genética no contacto com o meio ambiente), embora, posteriormente, o termo raça se vá dispersando com outros sentidos.

No entanto, Buffon indiciava que a raça seria algo temporal, visto que a espécie humana era una. Mesmo assim, as caraterísticas físicas e culturais que se faziam distinguir por força da linhagem levavam a que se pudesse organizar os tais grupos de seres humanos nas raças, mesmo dentro de cada uma delas. Assim, procurava explicar a diversidade humana não de forma fixa e tabelada, mas antes como resultado de um desenvolvimento natural que decorre nas linhas da história, sendo as caraterísticas diferenciadoras legados das gerações anteriores. A sua multiplicação e dispersão pelo mundo, juntando-se às diferenças culturais de cada lugar, aos diferentes climas e a exposição a doenças e outro tipo de fatores, alimenta o número de raças observadas e tipificadas.

A tese postulada pelo alemão e membro fundador da Academia de Berlim Johann Heinrich Samuel Formey (1711-1797) de que seria a Divina Providência a tingir a humanidade com outros tons de pele era fortemente negada pelos pensadores do Iluminismo; já que Deus não teria nada a ver com a criação humana. A descrença em alguma pré-existência era clara, já que algo perene e estático no tempo era impensável, dadas as transformações existentes nos seres vivos com o decorrer dos tempos. Buffon, na sua “Histoire Naturelle”, defende que essas diferenças na humanidade seriam melhor entendidas se classificadas, mesmo que não correspondessem a divisões da natureza humana per se. A história natural, para si, escrevia-se de forma ininterrupta e com constantes renovações, mediante as forças que atuassem no desenvolvimento de cada ser humano e que, conforme referido, se poderiam tornar transmitidas de geração em geração, ou seja, ser hereditárias.

Todos estes métodos e todos estes preceitos são resultantes, claro está, de um estudo profundo dos seus antecessores, todos eles europeus de raça branca, mesmo que procurassem, nas suas visões, abarcar toda a humanidade. A variável do tempo e da sua importância na história natural é, talvez, o maior contributo que Buffon traz para a discussão, para além do conceito de raça aplicado à diversidade humana. Porém, mantém a branquitude como central à existência humana, considerando que seriam precisos milénios (posteriormente, mudou a opinião para séculos) para que populações africanas se pudessem tornar brancas, isto sem haver misturas genéticas com os seus conterrâneos. Buffon também considerava que o sangue era diferente, embora a constituição genética fosse paralela; e que o próprio desenvolvimento da humanidade foi de um estado em bruto e por lapidar para uma sociedade civil refinada, apurada e lapidada.

Por sua vez, o seu compatriota e contemporâneo Diderot, embora não concebendo nenhum determinismo racial, partilha muitos dos princípios de Buffon, embora coloque um especial ênfase na dimensão cultural no comportamento humano. Diderot era profundamente ateísta e materialista, embora acreditasse que a espécie humana estava em constante evolução e mutação, assumindo algumas ideias de filósofos, como Pierre Louis Maupertuis (1698-1759, foi o primeiro presidente da Academia de Ciências da Prússia e diretor da Acádemie des Sciences) e Théophile de Bordeu (1722-1776), ambos proponentes do vitalismo, ou seja, de uma existência de uma alma. Diderot traz contributos para a psicologia e para a filosofia por força daquilo que é conhecido como transformismo, ou seja, a tal evolução da espécie (humana) no tempo.

“Somente Deus conhece toda a bondade que ele coloca nas suas obras, porque só ele é capaz de conhecer perfeitamente a justeza que brilha em suas obras, a relação mútua que se encontra entre elas, a harmonia que faz delas um todo regular e sabiamente ordenado, onde ele põe, estabelece a ordem para as conservar” 

Denis Diderot e Jean d’Alembert em “Encyclopèdie” (1751)

Diderot herda, em muito, o pensamento de Buffon, dando acréscimos sobre os fundamentos da moralidade dentro da história natural. Mesmo tendo consciência dos próprios transformismos a que as suas ideias estavam expostas, os iluministas sentiam-se como os classificadores do saber e da existência, sendo disso exemplo a redação e publicação da “Encyclopèdie”, que Diderot editou com o matemático e mecanicista Jean le Rond d’Alembert (1717-1783). Nesta fase, seria até o sexo a ser mais penalizador sobre a raça, já que consideravam o sexo dominante o masculino em função do feminino, naquele que era um patriarcalismo transversal em toda a vida real europeia.

Todavia, Diderot seria, entre os pensadores da sua geração, um dos mais vocais contra o fenómeno da escravatura, considerando-o ausente de empatia e de uma injustiça atroz. A liberdade natural era algo inalienável e, como tal, não haveria nenhum cidadão mais forte e mais capaz que devesse oprimir o outro. Da mesma maneira, procurava, antes de julgar, colocar as culturas e estilos de vida que não os europeus a par destes, considerando-os incomparáveis. Assim, ia abrindo perspetivas de forma a compreender o outro como alguém igualmente válido a partir de uma mundividência dinâmica e ativa, que se centrava nas ciências naturais, mas que, com o tempo, se foi focando nas ciências sociais. Isto porque, com as revoluções que foram acontecendo, em especial, nos Estados Unidos da América, a necessidade de refutar a iniquidade entre seres humanos se tornava mais premente. Porém, pensadores do século XX, como James Baldwin ou Frantz Fanon, mostrariam que ambas as perceções não seriam, assim, tão incompatíveis.

Por força do imenso desenvolvimento filosófico e na organização do conhecimento até aí criado, o Iluminismo surge como um fator de grande responsabilidade naquilo que é a organização da humanidade por raças. Mesmo que muitos se socorressem da crença em Deus na criação de raças distintas no início da existência, a ideia de que estas se poderiam distinguir por forças naturais, sociais e culturais foi marcante. Porém, a ideia de que haveria uma degeneração racial da existência humana, por força do pensamento antropológico de Buffon, anunciava uma distinção validada cientificamente de que haveria raças superiores a outras, mesmo que implicitamente.

A descoberta de povos e de costumes em muito distintos aos comuns pela Europa era um motivo de choque e de estranheza, que fazia fermentar um sentimento de superioridade racial possível de se verificar na relação colonizador-colonizado. Apesar de ser um sentimento que não é refutado na totalidade, o Iluminismo transporta uma mudança de paradigma, colocando a teologia e a religião de lado (e, por conseguinte, testemunhos de padres missionários que se opunham a raças superiores ou inferiores) e chamando a geografia e a biologia para o primeiro plano. Do ponto de vista antropológico, o conceito de raça começou a ganhar raízes nestas perspetivas, que foram sendo reforçadas e que foram alimentando conclusões de que haveria, de facto, raças superiores a outras, sustentando e legitimando evidentes relações de colonização entre territórios e entre povos. Desde a medição dos ossos à densidade dos músculos, qualquer registo antropométrico seria, com cruzamento de dados e fundamento científico, motivo para legitimar que uma raça pudesse ser inferior a outra.

O Iluminismo não conseguiu esclarecer, assim, que a raça também é uma construção social, por mais que tenha apelado à igualdade, à fraternidade e à liberdade entre todos, na salvaguarda de direitos naturais fundamentais para todos. Ultrapassando barreiras que se cingiam ao estudo da humanidade como meros seres vivos — o biólogo e zoólogo sueco Carl Linnaeus (1707-1778) chegou a tipificar alguns como “homo ferus” ou “homo monstrosus” —, permaneceram pontas soltas que abriram espaço a que ideologias de supremacia racial e moral se consolidassem. Porém, note-se, então, o esforço de fazer com que a raça fosse entendida como algo dinâmico e não pré-determinado, como algo que permite a humanidade ser diversa e, assim, um objeto de estudo que permanece, até hoje, por ser verdadeiramente compreendida.

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